Pílulas para o Silêncio (Parte CCCL)

Clauder Arcanjo*

Confidências a Antonio Carlos Secchin

 

Contra a treva da noite opaca 

sinto a luz que prenuncia 

teus versos me precipitando 

no difícil coração da alegria. 

 

A noite cai sobre mim como uma lâmina fria, enquanto leio versos que me trazem, ao (pres)senti-los, alegria. 

Secchin, precipitas em mim o alento e uma inconstante melancolia; enquanto alguém, distante do meu eu e próximo da minha memória, instiga-me: 

— Para que serve a Poesia, Clauder Arcanjo? 

Sob o lençol do silêncio da madrugada, pouco me importa com resposta a tais indagações ou filosofias; e volto a me entregar à corrente das estrofes, algumas com um quê de troças fugidias. De mais nada carecia: tu, “um iluminado de sombras”, ao meu lado permanecias. 

 

Vem de um sonho distante 

o que aqui celebro novamente: 

o amor e seu motor incessante 

que incendeia de luz toda a gente. 

 

— Mas o amor só não existe nas cartas? 

Alguém, “Indagador obsessivo”, teima em se intrometer nas nossas Confidências, poeta Antonio Carlos; e eu fico surpreso com infausta intervenção. 

Como a não querer dar voz a ente tão infame, silencio e retorno às páginas por ti concebidas. Contra tudo, eis que se insurge “o silêncio azul da tarde”. 

 

& & &

 

Era um galo gago, por isso 

a Noite não se despedia: 

ficava presa num gargalo, 

enquanto o canto não surgia. 

 

No fim da madrugada ingrata, o galo não anunciava a alvorada. Socorri-me da poética de João Cabral, mas um poeta só não tece uma nova aurora. 

Convoco, então, outros supostos vates e vejo-me diante de uma multidão de “zurros, miados e mugidos”. Tapo os ouvidos e concluo que teremos uma noite eterna, “quero aqui só lembrar o esquecimento”. 

 

Toda a mata matutou: 

se a Noite vai e o Sol não vem, 

qual seria a cor de um céu 

habitado por ninguém? 

 

& & &

 

Nenhum poeta conhece 

esse motor que maquina 

a explosão da coisa escrita 

contra a crosta da rotina. 

 

Prometo, Secchin, em louvor aos grandes mestres que nos antecederam, buscar preencher o vazio que existe entre o sabido e o desconcerto do mundo. Apesar de suspeitar de que, quando se desvela um pouco desse mistério, abre-se-nos outro cadinho do não-revelado. E, assim, a sina se faz permanente, desafiante, contínua. 

Tu, silente, advertes-me: “Como quase diz o ditado, promessas são dúvidas.” 

 

Aqui estamos nós 

unidos pelo sangue 

e dispersos pela vida. 

Sabemos de onde viemos, 

mas não sabemos nossa saída. 

 

& & &

 

Os ratos banqueteiam toda a história, 

e avançam contra os cacos do presente, 

seus dentes decompondo em pó a glória 

de um futuro podado na semente. 

 

Há as víboras, Secchin, que brotam da lida poética feito praga. Murmuram balidos, golpeiam a boa sintaxe, usurpam do verbo o sumo do espírito. 

Eis que surge o líder do movimento, com a bocarra de dentes afiados, martirizando a métrica, arvorando-se supremo apóstolo do novo: do pós-pós-pós… A Poesia, combalida e exangue, aguarda pela ressurreição dos banidos. 

Dá-me a tua opinião. 

 

Crê-se o maior vate do planeta 

um pigmeu no rodapé da poesia. 

Implora a Deus por quem o louve. 

Nada ouve? Ele mesmo se elogia. 

 

& & &

 

“Não reclame do preço que lhe peço, /Deus me cobra uma santa comissão.” 

Não estou a reclamar, Antonio Carlos Secchin, mas me calar seria motivo suficiente para a minha justa excomunhão. Eis-me fiel à Poesia que simboliza a vida. 

 

O silêncio transborda pelo forro. 

E eu não sei o que fazer de tanto 

passado vindo em busca de socorro. 

 

Fonte: trechos em itálico e em destaque extraídos da obra Desdizer, de Antonio Carlos Secchin (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2018). 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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