PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCII)

Clauder Arcanjo*

 

Para Kalliane Sibelli Amorim

 

Aquella vida de arriba,

que es la vida verdadera,

hasta que esta vida muera,

no se goza estando viva:

muerte, no me seas esquiva;

viva muriendo primero,

que muero porque no muero.

(Santa Teresa D’Ávila, em “Vivo sin vivir em mí”)

 

Tu me pedes serenidade, mas eu, confesso, revolto-me contra as ordens divinas. Para que tanto sofrimento, se viveste para ofertar flores, versos e pinturas? Se de tua boca imaculada nunca escapou um repúdio, sequer uma mínima blasfêmia? Se tua cidade sempre te viu desfilar serena, com teu cântico melífluo?

Com uma voz melodiosa,

minha dor atravessou

minha rua, meu silêncio,

em meu peito se aninhou.

Amiga, não me peças solidez e imanência beatífica. Sou tão só um reles vivente.

 

& & &

 

Ficará em mim a tua poética límpida, teus versos cândidos, tua palavra cativa da amizade infinda.

Em mim, restará a vontade de ter, na noite mais cruel, a tua presença confortante: à maneira de um poema incriado, recitado apenas no céu da memória. Versos que não se tornaram verbo, pois saíste mais cedo.

Ficará conosco, sempre e sempre, o olhar lúcido de uma trovadora maior, impoluta, imaculadamente bela.

Eia, a humilde dama, entre todas, bendita,

as mãos ágeis, à terra entrelaçadas,

os olhos, duas naus no infinito conduzidas…

— Ó, Deus! Como posso aceitar Teus desígnios? A rebeldia contra Ti açoita as minhas carnes. Sei que peco, no entanto tal pecado é o mais legítimo que habita em mim.

 

& & &

 

Haverá um paraíso para os poetas?

Haverá um rito floral para recebê-los no Jardim do Éden?

Se houver, Pai, avisa a São Pedro que prepare um evento singular. Uma das melhores das Tuas filhas, a maior de nossas escritoras potiguares, contra toda a vontade nossa, já veste o manto para a viagem final.

No dorso da noite espero

aquela barca de silêncio

com suas velas brancas, longas,

enervadas pelo vento,

aquela barca de acalantos

vagueando sobre o azul

profundo do esquecimento.

Há esperança que console nossa dor? Ô, Pai!…

 

& & &

 

Tomo a tarde entre os meus dedos e encontro-me rijo de dor. Distante, sem poder ouvir a tua voz, espero que todos os santos estejam ao teu lado.

Como se à beira do mar dormisses,

e não viesse o vento te acarinhar.

Ao retornar, sem a tua presença, nossa cidade será a mais sombria das vilas. Um poeta é sempre o maior, e melhor, canto de nossa província.

 

& & &

 

Levanto-me, abro a janela e um pássaro silente me aponta uma estrela invulgar no pesponto do firmamento: um brilho que se faz resistente, apesar das agruras ofuscantes do cotidiano.

De repente alguém solfeja uma canção que me revela uma paz inesperada, quando tento assacar contra Deus o maior dos impropérios que poderia escapar de uma boca impura.

Há abismos de silêncio dentro de minha alma.

Sento-me na calçada e choro. Mais por nós do que por ti, querida amiga. Ficaremos órfãos, saibas tu. Não somente o teu filho carnal, porém, de um modo especial, todos aqueles que consolaste com o colo lírico de uma diva e amiga.

Há de existir um recital para te receber: Cecília, Tagore, Neruda, Cora, Vinicius, Drummond, Thiago de Mello, Pessoa, Cabral, Santa Teresa D’Ávila, Bandeira, Manoel de Barros, Dante, Gullar, Jorge de Lima, São João da Cruz…

Como nos consolaremos de saudade tamanha, Senhor?

Ó, vale de lágrimas!

Ó, imenso deserto!

Tudo se desfaz, tudo passa!

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

 

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