PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCI)

Clauder Arcanjo*

(Pintura “Operários”, de Tarsila do Amaral)

 

A infância se esfacela brutal

 

Na Licânia longínqua, ele fez de tudo para fugir logo da infância. Queria ser um jovem autônomo: dono do seu próprio nariz, agente único dos seus dias.

Hoje, velho e sofrido, percebe que aquele seu agir esfacelou seus melhores dias, perdendo o sumo da infância e ficando maduro por demais ligeiro. E, como todo fruto que amadurece à força, o visgo endureceu, como se tudo se tornasse um enorme caroço.

 

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Esfrego os olhos e a tarde parece obtusa.

 

Companheiro Acácio entrou e me reclamou desta tarde obtusa de maio.

— Tarde obtusa? Andaste relendo Fernando Pessoa, Companheiro?

Ele baixou os olhos, esfregando-os de um modo nunca visto, e saiu. Antes, porém, me interrogou:

— Nunca serás sensível à poesia, seu canastrão?

E ganhou a rua, com aquele seu jeito… Como eu poderia dizer: obtuso.

 

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As metáforas cercam as lembranças por fora

e as lembranças se expandem para dentro.

 

Tento uma metáfora nova, porém nada me ocorre.

A simplicidade do verbo é tudo que tenho para ofertar. Sem falar nas lembranças telúricas que guardei do passado longínquo, mas que, quando revisitadas, transmudam-se num agora vívido e cristalino.

 

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Vieste em meio aos livros infantis

na tepidez das chuvas estivais

ao gosto vivo dos fonemas claros

na rima simples dos quintais.

 

Teus olhos vivos, em meio ao passeio infante, me demonstravam que a beleza poderia ser minha num horizonte nem tão distante.

No dia seguinte eu voltava calado e atento para a mesma praça, que se vestia de azul por receber os teus passos simples naquelas noites de julho.

Ao retornar para casa, tão feliz por tamanha dádiva, eu desconfiava daquele olhar em minha direção. Pouco importava: o sonho te trazia para mim, vivo e luzidio como a candura de dois infantes.

 

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E eu, eu sou uma rasura na beirada desta tarde,

ancho no mundo e em roupa endomingada.

 

Levarei no espírito, até os instantes finais, o cheiro da chuva caindo forte pelos beirais, enquanto minha mãe festejava a chuvarada, mesmo com receio dos relâmpagos e trovões descomunais.

 

Fonte: trechos em itálico extraídos da obra A estrela fria, de José Almino (São Paulo: Companhia das Letras, 2010).

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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