Pe. Fco. Cornelio Rodrigues – Reflexão para o XXI Domingo do Tempo Comum

Neste vigésimo primeiro domingo do tempo comum, concluímos a sequência de cinco domingos em que a liturgia faz uso do sexto capítulo do Evangelho segundo João, embora nos tenha restado somente quatro domingos, devido a interrupção para a solenidade da Assunção de Nossa Senhora no domingo passado. O Evangelho de hoje é João 6,60-69, e contempla a reação final dos discípulos, incluindo os Doze, ao longo e exigente discurso de Jesus sobre o pão da vida, ele mesmo, e a necessidade de alimentar-se dele. Tudo isso, ainda, como desdobramento do sinal da multiplicação ou condivisão dos pães no início do capítulo (cf. 6,1-15).

A multidão que tinha sido saciada a partir da partilha dos cinco pães e dois peixes quis, de imediato, proclamar Jesus como rei (cf. 6,15. Diante de uma ideia tão absurda, Jesus refugiou-se (cf. 6,15), mas a multidão o encontrou novamente, já na sinagoga de Cafarnaum, do outro lado do lago (cf. 6,22-25), esperando comer de novo pão gratuito e em abundância (cf. 6,26).. Ao sentir-se incompreendido, Jesus aproveitou a oportunidade para fazer uma ampla catequese, apontando para a importância de se buscar não apenas o pão material, pois, embora necessário e essencial, esse é perecível e seus efeitos duram poucas horas. Por isso, apontou para a necessidade de um alimento que dura por toda a vida, mostrando que esse alimento é a sua própria pessoa (cf. 6,27-40).

Ao apresentar-se como verdadeiro alimento, ou seja, como pão da vida ou pão vivo descido do céu, e convidar os ouvintes a comer a sua carne e beber o seu sangue, Jesus causou perplexidade, questionamentos, incredulidade e ira, gerando as mais diversas reações. O evangelista João recorda tudo isso para ajudar a sua comunidade a discernir e tomar decisões: o seguimento de Jesus é comprometedor… ser discípulo e discípula dele não é memorizar uma doutrina para depois repeti-la, mas é entrar em comunhão plena com a sua pessoa, assimilando seu jeito de ser; é esse o sentido de comer a sua carne e beber o seu sangue (cf. 6,54). Recebe-lo como alimento é tornar-se também alimento para os outros. Uma proposta de vida tão exigente assim não poderia ser absolvida com facilidade.

Tendo já mostrado as reações de outros interlocutores, como a própria multidão e as autoridades judaicas, ao discurso de Jesus como verdadeiro alimento e pão para a vida eterna, o evangelista quis mostrar também a reação dos discípulos, pois era essa a que mais interessava à sua comunidade que se encontrava com a fé comprometida, devido as perseguições e o “esfriamento” no fervor de alguns membros. Por isso, o evangelista recordou que “Muitos dos discípulos de Jesus, que o escutaram, disseram: ‘Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la’?” (v. 60). Os próprios discípulos contestam o discurso de Jesus, e essa é a grande novidade do evangelho de hoje. Ora, os evangelhos mostram muitas situações em que Jesus é contestado pelos seus tradicionais adversários (fariseus, saduceus, mestres da lei), mas nunca pelos discípulos. O máximo que os discípulos ousavam era fazer perguntas e pedir esclarecimentos sobre alguns aspectos da sua vida e do seu ensinamento.

A reclamação dos discípulos é um verdadeiro protesto contra Jesus: “Esta palavra é dura”. O evangelista emprega o adjetivo grego sklerós (σκλερος), o qual, além de duro significa também difícil, insuportável, inadmissível, ofensivo e violento. Os discípulos se sentiam completamente incapacitados para continuar no seguimento, uma vez que o anúncio de Jesus parecia inviável. A dureza da palavra de Jesus consiste no comprometimento que dela deriva: diante dela, é preciso tomar posições firmes como tornar-se alimento para os outros, fazendo as mesmas opções de Jesus e, consequentemente, assumindo as consequências. É uma palavra dura porque não se trata de um discurso para ouvir uma vez por semana, como a liturgia da sinagoga, mas exige uma coerência de vida cotidiana; não é uma palavra para ser simplesmente proferida, mas para ser vivida.

Além da reclamação, Jesus percebeu que “seus discípulos estavam murmurando, e por causa disso mesmo, perguntou: ‘isto vos escandaliza?” (v. 61). Murmurando, os discípulos repetem um dos antigos pecados de Israel. Os israelitas, recém-libertados, murmuravam constantemente contra Deus e Moisés (cf. Ex 16,2-4). O verbo murmurar, como emprega o evangelista (em grego: γογγυζω –gonguízo) expressa uma revolta contra Deus, considerando toda a simbologia do mundo bíblico, é a negação da fé. Portanto, os discípulos, ou pelo menos uma parte desses, fizeram revoltam contra Jesus, pois se sentiram ofendidos pelo seu discurso. Ao perguntar se aquilo, o discurso, os escandalizava, ou seja, se era impedimento para a fé deles, Jesus vai bem mais além, dizendo, em outras palavras, que era como se os discípulos “ainda não tivessem visto nada”: “E quando virdes o Filho do Homem subindo para onde estava antes?” (v. 62). Uma das passagens mais chocantes do discurso de Jesus foi dizer ser ele “o pão vivo descido do céu”; um absurdo para seus ouvintes que conheciam até mesmo seus pais e sabiam que ele não passava de um carpinteiro (cf. 6,41-42). Logo, a sua subida seria muito mais chocante para os discípulos, uma vez que compreendia a passagem pela cruz, destino reservado também aos discípulos. Aqui, Jesus os previne: coisas piores estão por acontecer.

Diante da reação negativa, Jesus não procura conformar seu discurso e suas exigências às capacidades e disposições dos discípulos; pelo contrário, reforça o que já havia dito e deixa claro que já previa a resistência e até mesmo a negação completa de seu projeto por alguns discípulos: “O Espírito é que dá vida, a carne não adianta nada. As palavras que vos falei são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não crêem’. Jesus sabia desde o início, quem eram os que tinham fé e quem havia de entrega-lo” (vv. 63-64). A revolta dos discípulos não faz Jesus alterar seu projeto. Ele reforça sua confiança no Pai e a relação intrínseca entre os dois: “É por isso que vos disse: ninguém pode vir a mim, a não ser que lhe seja concedido pelo Pai” (v. 65). Se foi o Pai quem o enviou, é também o Pai quem chama e atrai para o seu seguimento. Na história da salvação, a iniciativa é sempre de Deus. Quem se deixa atrair pelo Pai e vai a Jesus, terá a plenitude da vida, não como prêmio, mas como consequência.

Aquele momento foi um divisor de águas na vida de Jesus e dos discípulos, pois fora a sua máxima revelação, até então, na dinâmica do Quarto Evangelho. Foi o momento em que Jesus mais falou de si, deixando-se conhecer completamente. O evangelista sentia que a sua comunidade, vivendo momentos de altos e baixos no discipulado, precisava tomar decisões importantes e, para isso, era necessário tornar Jesus cada vez conhecido em toda a sua profundidade, inclusive deixando claro o seu programa de vida com as exigências nesse implicadas. Até mesmo o encontro semanal da fração do pão (eucaristia) estava perdendo a sua importância na comunidade, passando a ser apenas um conjunto de ritos, deixando de ser verdadeiro encontro de comunhão transformadora. Assim como Jesus mesmo fez, também o evangelista quis mostrar que o discipulado não é uma obrigação, e sim uma opção radical e exigente. Por isso, “A partir daquele momento, muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele” (v. 66). Houve desistência entre os discípulos porque nem todos estavam dispostos a aderir aos compromissos do discipulado. As “palavras duras” são realmente difíceis de ser assimiladas e vividas, de modo que um seguimento superficial não tem como se sustentar. Por isso, muitos desistiram de continuar seguindo-o.

Entre os discípulos e discípulas, estava o seu núcleo primeiro, o chamado grupo dos Doze, a quem Jesus se dirige com muita firmeza: “Vós também vos quereis ir embora?”  (v. 67). Com essa pergunta, Jesus mostra seu respeito pela liberdade de cada pessoa e, sobretudo, as convicções do seu projeto: é mais fácil ficar sem discípulos do que mudar o seu programa. Suas exigências são inegociáveis. Em uma sociedade dominada pelo egoísmo, injustiça, privação de liberdade, exclusão e hipocrisia, as “palavras duras” são necessárias para desestabilizar o sistema e, assim, iniciar a construção de um mundo novo repleto de amor, justiça, fraternidade e paz.

Mesmo não sendo totalmente coerente, o grupo dos Doze optou por continuar no seguimento, como mostra o evangelista com a resposta de Pedro: “Simão Pedro respondeu: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o santo de Deus” (v. 68-69). Ao responder no plural, Pedro fala em nome dos Doze. É a resposta da comunidade que, embora pequena numericamente, procura perseverar com fidelidade no seguimento, reconhecendo que, mesmo duras, as palavras de Jesus contém vida, são palavras de vida eterna, as únicas que podem restituir vida em abundância e esperança para todos, sobretudo os mais necessitados.

Além da confiança nas palavras de Jesus, a resposta de Pedro também expressa a fé da comunidade: “nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o Santo de Deus”. Provavelmente, essa expressão é uma adaptação que o evangelista faz da solene profissão de fé de Pedro nos evangelhos sinóticos: “Tu és o Cristo” (cf. Mc 8,29; Mt 16,16; Lc 9,20). Quem o reconhece como o “Santo de Deus” não se deixa escandalizar pelas suas declarações como pão descido do céu; pelo contrário, nessas palavras encontra forças para crescer na fé. Assim, os Doze conseguem assimilar a outra dimensão da dureza: a firmeza, a coragem e a força, elementos necessários e essenciais para implantar, no mundo, a civilização do amor.

Que saibamos reconhecer que as palavras duras de Jesus são também portadoras de espírito e vida, por isso, indispensáveis para a missão. Que essas mesmas palavras nos ajudem a discernir e escolher a qual projeto e religião seguir: um projeto de vida consistente e comprometedor, que não exige meios termos, mas apenas um engajamento total e transformador ou, simplesmente, uma religião como conjunto de ritos e normas com encontros dominicais fervorosos e semanas vazias de sentido e de amor. O Evangelho de hoje nos coloca na encruzilhada; é preciso tomar decisão: continuar seguindo-o ou abandoná-lo. Ele nada impõe, cada pessoa é livre para segui-lo ou não. Porém, de quem escolhe segui-lo exige-se o compromisso de ser portador de uma palavra dura, embora portadora de vida, esperança e amor.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN