O Fantasma de Licânia (Parte IV) – Clauder Arcanjo

Para Mia Couto

 

— Sim, continue; interessante. Se eu tenho condição de dar forma vibrante a tal aventura? Não sei se não tentar. Prometo que darei, de mim, o melhor.

O que foi que me sopraram?!

Calma, paciência, tranquilizem-se. No próximo capítulo, eu contarei. Por hoje, é só, e… tenho dito.

Olha, olha, não vão me faltar com o respeito!

 

***

 

Eu encerrei assim o capítulo precedente. O leitor (sim, você, seu desalmado!) saiu da condição de agente da passiva, inflou o peito, todo cheio de si, e invadiu esta minha noveleta na condição ativa de sujeito. Melhor, de sujeito metido a besta. Intrometido!

“Calma, Clauder Arcanjo! Não perca o foco, não se afaste do seu objetivo maior. O Prêmio Jabuti o espera.”

Quem é você que já vem metendo o bedelho na minha vida literária? Quem lhe disse que eu ando a me preparar para, um dia, ser digno de vencer tão honroso prêmio das letras nacionais?

Pouco importa. Deixemos tudo para lá, avante!

Darei sequência à minha história. Fantasma de Licânia, tremei! Aqui vou eu.

 

***

 

— Suas mãos eram esqueléticas. Menos do que carne e osso. Quando pousou aqueles dedos compridos e brancos sobre o meu ombro esquerdo, eu…

— Você antes havia nos dito que fora no ombro direito, Zé Aguiar? — interrompeu-o o Wagner da Dona Alzira, com seu vozeirão de locutor de cabaré, sempre preocupado em segregar o verdadeiro do falso nas divagações etílicas do Zé Aguiar.

— E você lá quer saber de uma boa história, Wagner! Onde já se ouviu, o cabra mais preocupado com um pequeno detalhe? Ou seja, se se deu no ombro direito ou no esquerdo. Homem, vá pra porra! Encerro por aqui. Vão você, Wagner, e toda esta nossa cidadezinha, para baixa da égua!

— Eita, aloprou! O homem aloprou! — gritou Chico da Maura. Edir, uma rodada da branquinha amansa corno para serenar os ânimos da turma.

A paz reinou entre uma bicada e outra da “maldita”. De repente, um anúncio:

— Deu o burro! Deu o burro!

— Burro é o seu pai, seu cabra safado! — disparou o velho Parnir.

— Calma, gente! O cambista está anunciando o bicho. Deu burro na milhar de hoje.

Alguns saíram de fininha, a conferir se haviam carregado no burro. Todos eles críticos ferrenhos dos jogos de azar; isto para consumo das pias Filhas de Maria, suas honradas esposas. Em verdade, em verdade, exímios jogadores. Quer no bicho, no bozó, na loteria federal… Enfim, em Licânia, apostava-se até em corrida de sapo.

— É só para entreter o tempo, minha Ceicinha!…

— Entreter o tempo ferindo a lei de Deus, filho?! Não ouviu o que o padre Araquento nos orientou na homilia do domingo. Ouviu ou não ouviu? — disparou Ceicinha, do alto do seu um metro e quarenta de altura.

— Sei, eu sei… Eu que sei!

— Se sabe, me diga! — atalhou Ceicinha, com seu xale negro sobre o ombro direito. Sim, ombro direito. Disto não me resta a menor dúvida. Ombro direito.

— Nada, meu chuchuzinho. Minha flor da jabuticaba. Estava apenas pensando alto. Cabeça nas nuvens, não sabe!?

Em verdade, em verdade, eu aqui vos digo: o padre Araquento emitia suas raivosas prédicas contra o jogo do azar, enquanto, na surdina, enviava o Raimundo Sacristão para cercar o “bicho” na banca do Raul.

Se eu estou maculando a honra do representante de Deus nas terras de Licânia?!

Caro leitor, honra por aqui é artigo raro! Raríssimo… Quem a tem não propaga, nem se regozija de tê-la. Quem não a tem, vomita disfareces.

— O Fantasma de Licânia acaba de entrar na casa do Seu Zequinha Coletor, meu povo!

Todos os presentes se entreolharam, e o manto do medo anestesiou o movimento das pernas, a bloquear, também, a fala dos nossos honrados licanienses.

 

***

 

Paro por aqui. O Fantasma de Licânia, prometo, estará conosco na semana vindoura.

Estou com medo. Confesso aqui, diante da minha meia dúzia de leais leitores. Eu tenho medo, muito medo. E o medo é um péssimo companheiro. Tomara que isso não me garroteie a fantasia, não ponha fim às minhas imaginações fabulativas.

Ótimo domingo.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]