O Escritor, a menina e a boneca

Alex Medeiros

O Escritor, a menina e a boneca
No livro As Loucuras de Brooklyn, do escritor americano Paul Auster, onde narra o cotidiano nova-iorquino do protagonista Nathan, um viúvo solitário, e dos seus sobrinhos Tom e Lucy, há uma passagem espetacular em que o jovem conta sobre um episódio envolvendo o escritor tcheco Franz Kafka, um dos mais importantes do século XX e talvez aquele mais admirado e mais vezes estudado. O caso narrado por Tom na página 153 virou uma lenda.
No outono europeu de 1823, um Kafka de 40 anos passeava por um parque de Berlim, onde morava, na companhia de uma namorada (ele jamais casou e não teve filhos) quando encontra uma menininha soluçando. Ele pergunta o que há de errado e ela diz que perdeu sua boneca. A reação do escritor vai desencadear a lenda, pois de imediato avisa à garota que “sua boneca saiu em viagem”; e ao ser indagado como sabia, “porque ela me escreveu uma carta”.
Sua resposta iniciou uma história que se estenderia por três semanas. Foi para casa e passou a fazer cartas, no mesmo processo criativo que tinha nas obras incríveis, como A Metamorfose, no testemunho da namorada, Dora Diamant.
O episódio tratado como lenda mexeu com a imaginação de quem o conhecia, durante décadas. E revelava um lado lúdico e amoroso de um autor geralmente severo no fazer literário, conhecido por romances sombrios e melancólicos.
O livro de Paul Auster foi lançado em 2006, e apesar de tocar e encantar leitores e estudiosos de Kafka não provocou tantas reações editoriais. E já havia décadas que o alemão Klaus Wagenbach procurava sinais da menina.
Só que na Espanha, o escritor Jordi Sierra, também estudioso de Kafka, decidiu agir com inventividade e mesmo sem a certeza da narrativa construiu o romance Kafka e a Boneca Viajante, investido de todo o licenciamento poético.
Lançado no mesmo 2006 do livro de Paul Aster, o texto do espanhol se aventurou na suposição das missivas do autor tcheco, e recheou seu livro com cartas imaginárias, como se estivesse resgatando a lenda da boneca perdida.
Mas anos depois, a escritora de livros infantis Larissa Theule recebeu de um amigo um artigo de jornal referente ao caso e sugerindo, “você deveria escrever esta história”. E ela mergulhou em Kafka na biblioteca de Pasadena.
Leu todas as biografias que encontrou, mas nenhuma falava da lenda da menina e sua boneca. Até que soube do livro “O Último Amor de Kafka: o Mistério de Dora Diamant”, da atriz, escritora e âncora de TV, Kathi Diamant.
Ali, a autora de Nova York que é profunda estudiosa da obra de Kafka contava sobre o episódio narrado por Dora, em que destacava o grande interesse do autor em transformar as cartas da boneca numa cura da melancolia da menina.
Larissa conversou com Kathi, se enfronhou na história até descobrir que a pequena dona da boneca se chamava Irma e que o escritor morreu meses depois da última carta escrita e lida como se tivesse sido enviada pela boneca.
As cartas narravam a aventura da boneca em viagem pelo mundo, consolando sua dona de que conhecer o mundo e a vida era importante. Descrevia passeios em Londres e em Barcelona, encontros com Peter Rabbit e Gaudi.
Com a parceria da ilustradora Rebecca Green, o livro de Larissa, Kafka e a Boneca traz para o universo infanto-juvenil a fantástica história de um autor imbuído de alimentar a imaginação da menina para dar-lhe conforto da perda.
Muitos anos depois, a menina Irma, já adulta, achou uma última carta dentro da boneca que Kafka comprou. Encerrava dizendo “Tudo o que você ama provavelmente estará perdido, mas no final, o amor retornará de outra forma”.
Publicado na Tribuna do Norte

Deixe um comentário