NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DAS ARTES PLÁSTICAS EM MOSSORÓ

Por Márcio de Lima Dantas - Professor do Departamento de Letras da UFRN

O universo da produção pictórica mossoroense é mais rico e complexo do que fomos acostumados a representar e a repetir, sobretudo nas mídias, que acabam por nos influenciar a imprimir os contornos da imagem que fazemos de nós e da cidade na qual vivemos. Enquistada nas terras quentes do oeste, equidistante de dois grandes centros, Natal e Fortaleza, permanece no imaginário como uma polis isolada e sem maior acesso a determinadas tradições da história da arte.

Porém, a comarca da arte não se rege pela gramática da política ou da economia. A arte ocupa no humano um lugar mental, que se manifestará de maneira relativamente autônoma com relação ao entorno do grande teatro do mundo. Ou seja, a arte é uma espécie de imanência, uma necessidade humana, para servir de contraponto ao que convencionamos chamar de realidade. Não dizem que a poesia existe por que o real não basta, não é suficiente para atingirmos algum tipo de equilíbrio, ou do que chamam de felicidade?

Destarte, toda e qualquer cultura manifestará através da arte o modo como sente e representa as coisas ao redor, – de acordo com o espírito da época -, organizando as mesmas invariantes, tendo em vista a sintaxe de determinada sociedade, como um caleidoscópio que, a partir dos mesmos diminutos objetos contidos no seu interior, dado uma sacudida, transforma-se em novo belo conjunto de imagens.

 

Cangaceiro, de Joseph Boulier, coleção Isaura Amélia

 

Vamos aos artistas. Vou logo avisando que não pretendo dar conta de tudo e de tantos que produziram arte em Mossoró, farei referência tão-somente a alguns poucos nomes que iconificam e fazem saber, através de sua qualidade estética, que a cidade foi capaz de engendrar alguns nomes de importância para a arte no estado do Rio Grande do Norte. Não há pesquisas que nos ajudem a precisar nomes e datas acerca de como evoluíram as artes plásticas em Mossoró.

Entretanto, a cidade teve fôlego estético suficiente para conceber uma tradição no sistema semiótico pintura, que está organizada na artista Marieta Lima e sua obra multifacetária. Mas, antes de Marieta Lima, já houvera o artista João Nogueira da Escóssia (1873-1919), no final do século XIX. Não se restringiu apenas às xilogravuras que ilustravam o jornal O Mossoroense, adentrou por outros domínios do desenho, tais como a charge, a caricatura e ilustrações para publicidades. O seu ateliê foi responsável inclusive de produzir rótulos para medicamentos. Curioso notar que só após as vanguardas do início do século XX, como o Dadaísmo, por exemplo, algumas espécies de designs tipográficos incorporaram o que era tido como meramente funcional ou arte técnica/decorativa, elevando-os como possibilidades de serem considerados como objeto estético.

Marieta Lima (1912-2012), na pintura em Mossoró, se inscreve como o nome mais importante, tanto no que diz respeito a presença de um insofismável talento quanto no que concerne ao domínio de diversas técnicas da arte de desenhar e pintar. Discípula da franciscana Irmã Inês, professora de artes do Ginásio Sagrado Coração de Maria (Colégio das Freiras), estudou com sua mestra várias técnicas de pintura e do desenho, talvez por isso seja difícil uma dicção e uma sintaxe próprias, na medida em que adaptava a técnica ao tema do trabalho, indo desde um suave impressionismo lírico, com pinceladas um tanto pastosas, até o desenho de fatura classicista.

Notabilizou-se pela pintura de cunho religioso e pelas belas composições cromáticas de suas muitas naturezas-mortas, aqui percebe-se uma franca e lírica hegemonia da cor sobre o desenho. Dotada de enorme sensibilidade artística, tinha a exata noção do equilíbrio compositivo que deve reger o cromatismo quando da harmonia de justapor cores, causando um efeito de agradável suavidade para quem contempla alguns dos seus exuberantes arranjos florais.

Ainda com relação aos objetos da paisagem do seu entorno, tudo parecia lhe despertar a curiosidade e o pretexto para ser transposto para as telas. Como retratista, encontramos uma obra prima de elegante fatura e excelente êxito ao retratar o rosto de Kennedy (22.11.1963). Nada falta ou excede. Basicamente três cores foram suficientes para dar a exata compleição da figura. O ocre escuro do fundo contribui para ressaltar o masculino rosto branco e o paletó em tom fechado. Creio ter conseguido delinear um semblante no qual se mesclam uma personalidade assertiva e viril, ao mesmo tempo em que os olhos exalam uma ternura advinda de camadas mais profundas da alma.

Outro exemplo do retratar o humano está no vendedor de côcos. Esse bem mais provido de elementos, embora o homem do povo esteja confortável no trato do seu ofício, estático, porém pressupondo uma dinâmica dada pelo movimento das ruas. As cores laranja, verde e azul imprimem uma certa dignidade a um senhor negro que sugere encontrar-se ancho no trabalho simples de quem, com a boca aberta, repete algum pregão. O conhecimento de geometria de Marieta Lima é perceptível nas proporções das partes de um corpo, formando um todo harmônico e despertando empatia no expectador. Desenho e cor dos frutos a serem comercializados dariam por si só uma bela natureza-morta, devido o esmero com que foram pintados, sobrepostos uns sobre os outros.

No que concerne à pintura da paisagem, temos um pôr-do-sol de Tibau, contemplando duas jangadas em mar esmeralda e revolto. Ergue-se do lado direito uma parede em terracota, como a emoldurar a tela e criar a harmonia com as duas jangadas do lado direito. O contraste do fundo parece simbolizar o crepúsculo inerente ao deus Kronos, mergulha o dia na sua pouca claridade e eleva-se a noite com seus belos matizes de azul. O silêncio impera. Apenas o barulho das ondas imprimem à marinha a agonia de um dia que fenece.

Uma outra tela que nos parece dotada de capacidades pictóricas aprendidas não pela intuição ou auto-didatismo, mas pelo domínio das proporções matemáticas, é a retratação de uma igreja antiga com traços barrocos simplificados, visto que nada excede, como sucede à tipificação do barroco enquanto estilo histórico. O que chama a atenção é o efeito de permanência e busca de eternidade do conjunto chantado no chão. O céu de um azul profundo, com nuvens esparças, sugere um frescor que só a simplicidade mais autêntica pode emanar e despertar no indivíduo a necessária calma para se relacionar com a Jerusalém terrestre: uma igreja com linhas verticalizadas que buscam placidamente, junto com as palmeiras também verticais, o infinito de um céu que conduzirá, talvez, o retorno ao paraíso perdido.

Para além de temas que conduzem a especulações filosóficas, por meio dos símbolos contidos nas telas, voluntários ou involuntariamente, pois que não interessa ao Imaginário se foi de caso pensado ou puramente conduzido por um impulso ingênuo e natural, fazendo valer pelo seu poder qualitativo de representar a constelação de signos que nos regem, nos denunciam e nos conformam com temperamentos distintos, encontramos no conjunto da obra da pintora telas extremamente prosaicas, revelando alguém que observava seu entorno com atenção.

Com efeito, é o caso da tela na qual estão retratados dois gatos em um momento lúdico e de carinho. Embora inusitado, pois que fruto da imaginação da pintora. Há um buquê de robustas rosas vermelhas junto com ramos de flores brancas. Como se sabe, uma tela não é uma espécie de fotografia de um instantâneo ou a retratação de algo posado. Um quadro é uma eventual verossimilhança – o que parece ser real -, ou seja, uma confluência de linhas, planos e cores que engendram empatia a um eventual expectador. Muito bem, isso sucede na tela dos dois gatos: todos os elementos conseguem se individualizar, porém, uma visão analógica, causa não mais um efeito de estranhamento da justaposição dos signos, mas uma simpatia à combinação do vermelho, do azul, do verde, do negro e do branco, que representam o carinho e amizade entre dois seres.

Em síntese, Marieta Lima é o mito fundante da pintura em terras de Mossoró, sua caligrafia é matriz e nutriz de uma grande plêiade de pintores que a sucederam ao longo do tempo, estendendo-se até nossos dias. Mesmo sendo capaz de lecionar desenho geométrico, que não é coisa simples, em colégios e a particulares, na sua casa, provando o quanto dominava a arte da representação através do desenho e das cores, ou seja, o quanto tinha valor como pintora, possuía um temperamento não detentor da vaidade tão peculiar no meio artístico. De um ethos simples, chegada a uma conversa, cuidava da casa e colecionava cactus.

Com Marieta Lima, estudaram José Boulier Cavalcanti Sidou (1951-2004), – mesmo tendo estudado pintura em São Paulo, sempre voltava à casa da pintora – e Luiz Varela Laurentino (1942-2007), ambos expoentes do que melhor a cidade produziu em pintura, visto que possuídos de talentos inatos e detentores de vasta produção de telas que se encontram em casas e coleções particulares.

Há algo muito curioso no temperamento dotado de vastas reservas de energia, da pintora mossoroense, que parecia não comportar no seu espírito: sua vasta capacidade de trabalho, que implica aprender, e que entornava a taça de puro cristal da sua mente e do seu corpo. Não se contentando em elaborar seus trabalhos, também ministrava cursos de desenho e pintura em sua casa e colégios, como uma espécie de gente que teme o passar do tempo, a inexorável marcha para a morte, enfim, nada edificar e deixar uma vida no anonimato. Sabemos que é do artista o ontológico desejo de permanecer no mundo por meio de suas obras de arte.

E o que tinha mais perto para que repassace suas capacidades com as telas e pincéis? Ora, sua família, seus dois filhos. Vicente Ivan Lima (Mossoró RN, 1932-2013) e Ivanise Lima (Mossoró RN, 1934). Embora não detentores de um substrato de talento, puxando à mãe, conseguiram integrar o incipiente meio de artistas plásticos da cidade.

Ivan Lima, embora detivesse um pouco o senso da perspectiva ao retratar paisagens, não conseguiu se igualar à sua genitora, caindo no lugar-comum de transpor para as telas figuras sem originalidade ou buscando ângulos novos, já que arte é desde sempre forma, nunca conteúdo. No que diz respeito ao retrato de pessoas, também incorre em equívocos primários, visto não conseguir lograr êxito no desenho de partes do rosto que dariam a necessária harmonia ao conjunto. Suficiente contemplar o retrato de um senhor, nos quais lábios e sobrancelhas refogem das proporções obrigatoriamente necessárias, tanto é que os olhos dizem uma coisa, a boca sugere outra.

Contudo, creio, tendo dito isso, que minhas palavras não invalidam a pintura dos filhos de Marieta Lima, na medita em que foram frutos de um epos (ação) subjetiva de uma mãe que amorosamente queria deixar um lastro de seu sangue estético no seio da família, assim como fizeram muitos artistas ao longo da história da arte. Bach ensinou todos os filhos a tocar instrumentos. Alguns se destacaram. Nenhum o superou. Que importa? A pintora portuguesa Josefa de Óbidos aprendeu inúmeras técnicas de artes plásticas. Contudo superou o pai, sendo a maior expressão Barroca na pintura em Portugal. A arte e seus desdobramentos não é matemática.

Mas Ivanise Lima tem um bela tela. Um revôo de três patos selvagens sobre as águas paradas de um lago. Destaca-se por sua originalidade e suave inspiração. Cada pato encontra-se numa envergadura diferente ao alçar vôo, conformando um triângulo equilátero. Com grande maestria, conseguiu retratar a exata forma no qual cada ave se encontrava no momento pegando impulso para levantar o vôo.

Deixe um comentário