Natal não é magia
Por definição, «magia» é o suposto ato que consegue produzir efeito sem mediação. De facto, tal, a ocorrer, seria, mesmo, mágico. Só que tal não ocorre, nunca ocorre. Tal intransitivo trânsito implicaria que, de um primeiro movimento, esse que desencadearia o ‘ato mágico’, e que com tal ato não coincide, se passasse por, literalmente, nada – o absoluto de ausência de mediação –, para ‘chegar’ a um ‘outro ato’, fruto de tal ‘trânsito pelo nada’ (por favor, não experimentem).
Como é evidente, nada disto faz sentido; nada disto é possível.
De notar, que, para os crentes na ressurreição – sub-grupo dos ‘crentes em qualquer coisa’ – tal problema não se põe, pois, para eles, a morte não é o mesmo que o «nada», não é uma «aniquilação». É uma passagem.
A questão já é posta, em termos muito aproximados a estes aqui presentes, mas sem ironia, por Platão, mesmo no fim da sua obra Apologia de Sócrates, pela boca deste último (cota 40c-41d). Ou a morte é uma aniquilação, um infinito sonho sem sonhos, sem intuição alguma, uma ‘noite’ de trevas sem fim, ou é uma «metamorfose», logo, é operada por uma qualquer mediação, conhecida ou desconhecida, todavia, em crível possibilidade, em eventual ato de fé; todavia, fé numa mediação. Fé assim posta em lógica possibilidade, irredutível.
É esta possível metamorfose a razão pela qual, para o crente na ressurreição de Cristo, esta não é um ato mágico, mas um ato operado por meio da mediação de Deus, o Pai, mediação que é Cristo, que é Carne de Cristo, Carne que é espírito e matéria em singular ato.
Ora, o Natal é assim: nele, não há magia alguma, apenas a utilização de uma mediação operada por Deus, o Pai, com a literal co-operação de um ser humano, de seu nome Maria. Deus informa a carne de Maria; o modo de tal informação é desconhecido em seu pormenor, mas tem de ter havido um algoritmo mediacional – coisa de Espírito, não de boçal matéria –, que se deve poder investigar; não será fácil, pois será altíssima matemática, mas é de tentar.
Nada de mágico. Tudo mediacional. Tudo informado. Tudo passível de se saber, pois de dimensão incarnada, logo, finita. Nada de mágico.
Então, como dizer do espanto que quer o ato de divina incarnação quer os atos inspirados – mais ou menos remotamente – em e por tal ato incoativo suscitam no observador atento e sem velatura cognoscitiva? Não é magia, é o quê?
A humanidade, em sua diferença multímoda, muito antiga, já cunhou termos para o que está em causa com tais eventos especiais; eventos que, desde sempre, parecem ter tido especial sentido para quem os observou.
Neles, não há magia, mas há isso que foi detetado desde que há humanidade e que terá levado à fundação do que é propriamente humano, manifestado pelo aludido «espanto»: a «maravilha», o «encanto», o «deslumbramento», o «prodígio», o «pasmo», o «arrebatamento», o «assombro», etc., tal a importância que tais atos revestem perante a humana inteligência, por eles posta em literal «êxtase», fora de si, atirada para um estado irredutível ao comum cinzentismo do ramerraneiro quotidiano.
O Natal não é mágico, mas é tudo o que ficou dito acima, em torno de isso que provoca espanto. O Natal é espantoso, porque é a estranha iniciativa de Deus se fazer carne, aparentemente algo em si mesmo detestável até que assim foi decidido, e logo por Deus.
Espanto dos espantos: esse que está para lá de todo o movimento, degradação, entropia, morte, decide descer até tudo o que está submetido a isto e viver e morrer como ser humano, submetido a tudo o que os seres humanos têm de suportar, incluindo uns aos outros. Espanto.
Todavia, nada mágico. Não há magia na incarnação, maravilhoso milagre em misterioso algoritmo; nada há de magia na Senhora do Ó, na Senhora do Leite, na Senhora da Pedagogia – invocação esquecida –, na Senhora do Vinho das Bodas de Cana, na Senhora do Calvário, na Senhora da Piedade. Nada mágico, tudo muito mediador, muito incarnado, muito Maria, muito sofrido e muito alegre, consoante. Carne em paixão, paixão que pode ser dolorosa, mas que também pode ser de alegria: Maria da Ressurreição, que também o foi.
Nada em Jesus é mágico: a primeira respiração em que pela primeira vez o oxigénio do ar lhe ‘queimou’ os pulmões, o primeiro toque no seio da Mãe, as sucessivas obediências do Deus em carne, à carne santa e sábia da Mãe; a carne em dor antecipada que teve de responder à questão do Cálice, a que o Pai não respondeu, nem podia responder; o último toque na pele da Mãe, antes de ir para a morte; o primeiro olhar em metamorfose de ressuscitado. Tudo maravilhoso e espantoso, nada mágico.
Se fosse mágico, se bastasse o desejo para que nem vontade tivesse de haver, que bens e que males seriam fáceis de criar, de tirar do seu nada? Mas não, não: há que ser vontade, e, por ela, início de caminho de mediação para que bem e mal – o bem possível falhado – possam ser, por presença e ausência.
Se o que se quer mesmo é magia, então, é de ir a correr já para o casino, em que os espetáculos de magia são reais e muito agradáveis na sua espetacular ilusão. Esses.
O Natal de Cristo é a antítese total de algo mágico.
Se é purpurinas e egos cheios que se quer, não se celebre o Natal, celebre-se a humana impotência para o real espanto, tudo muito purpurinado, procurando enganar a angústia de quem sabe que a opção posta por Sócrates é válida: vida terminada em trevas e nada ou vida em divina metamorfose. Terror absoluto ou fé?
Santa intuição, essa dos loucos que intuem na luz do Menino do Presépio o absoluto de esperança em que há que ter fé.
Ou nada, absolutamente nada, mesmo com purpurinas.
Santo Natal.