Monitorando os riscos à democracia

Homero Costa*

Em julho de 2000 foi fundado em São Paulo o Instituto de Defesa do Direito de Defesa.
Trata-se de “ uma organização da sociedade civil de interesse público (…) que trabalha
pelo fortalecimento do Direito de Defesa”. Tem por objetivo “fomentar na sociedade e
em instituições do Estado a ideia de que todos têm direito a uma defesa de qualidade,
à observância do princípio da presunção da inocência, ao pleno acesso à Justiça, a um
processo justo e a cumprir a pena de forma digna. Tudo isso independentemente da
classe social, de ser culpado ou inocente, ou do crime pelo qual está sendo acusado. O
que buscamos é criar um espírito de maior tolerância na sociedade”. Ao longo de 20
anos foram muitos os projetos desenvolvidos pela entidade, outros que continuam (
mais detalhes estão acessíveis na sua página http://www.iddd.org.br).

Em maio de 2020, uma de suas importantes iniciativas foi a formação do Centro de
Análise da Liberdade e do Autoritarismo, um órgão de pesquisa “independente e
apartidário” que pretende “produzir e disseminar conhecimento sobre a qualidade do
Estado de Direito e da democracia”.

Uma das primeiras iniciativas do Centro foi criar uma Agenda de Emergência e uma
plataforma que “registra e categoriza eventos que trazem possíveis riscos à democracia
e ao Estado de Direito” .

As pesquisas iniciais analisam as manifestações de autoritarismo em 2019, no Brasil e
no mundo e continuam a fazer isso no ano em curso.

O que justificou a sua criação foi à constatação do crescimento de tendências
autoritárias no mundo. Como afirma no documento de criação do Centro: “Pela primeira
vez neste século, o número de regimes autocráticos superou o de democracias e o Brasil
é um dos protagonistas desse declínio democrático. Temos assistido a um processo de
intensa corrosão da civilidade política e de radicalização do antagonismo político, de
gradual captura e esvaziamento de instituições de controle, de politização de órgãos de
estado, de ameaça à liberdade de imprensa, à liberdade acadêmica, e a outros direitos
civis e políticos, direitos socioeconômicos e de proteção a minorias. Com essa
combinação, põe-se em xeque a própria integridade do projeto constitucional
brasileiro”.

Há também referências à crise sanitária da covid-19, cujo impacto sobre a democracia
no mundo podem resultar numa aceleração autoritária, como é o caso do Brasil, no
qual a crise ocorre em meio ao declínio democrático. Nesse sentido, melhor
conhecimento, com pesquisas qualificadas, podem contribuir para encontrar caminhos
que levem à manutenção da ordem democrática, com o estímulo ao diálogo e à
promoção do debate público sobre democracia e liberdade.

A questão relevante hoje é: a democracia está mesmo em risco no país? Para alguns
analistas, como Marcos Nobre, a resposta é afirmativa. No livro “Ponto final: a guerra
de Bolsonaro contra a democracia” (Editora Todavia, 2020) ele afirma que Bolsonaro
age de forma consciente e metódica, apesar de aparentemente errático e confuso, e
cujas práticas e declarações “apontam para uma escalada autoritária”, e constata que
o governo está se tornando cada vez mais autoritário e uma ameaça real à democracia,
ao desafiar abertamente dois poderes fundamentais de uma democracia
representativa: O Congresso Nacional e a Corte Suprema (Supremo Tribunal Federal).
Há, portanto, um contexto de ameaças de rupturas da ordem democrática “com as
armas da democracia” como afirmou o presidente da República.

Mas o que ocorre hoje tem antecedentes. As ameaças ao regime democrático não surgiu
de repente. É um processo. E encontra um cenário que favorece. Em novembro de 2018,
a corporação Latinobarômetro (sediada no Chile), que tem feito pesquisas sistemáticas
na America Latina desde 1995, publicou o resultado de uma pesquisa que mede o apoio
à democracia e revelou um preocupante declínio do apoio à democracia na região, com
uma média de 48%, o pior ano desde 1995. Não teve nenhum indicador que tenha tido
uma evolução positiva e a queda de confiança na democracia e na política teve seu
maior nível de desencanto.

Os indicadores de confiança indicaram que houve foi uma regressão: apenas 5% dos 20
mil entrevistados em 18 países diziam existir plena democracia em seus países, com o
crescimento do número de cidadãos que se declararam indiferentes ao tipo de regime
e em apenas nove países, o apoio a democracia superou 50% .

No Brasil o percentual foi de apenas 34%. Dos entrevistados nos países latinoamericanos, apenas 20% acreditavam que seus países estavam progredindo (no Brasil,
eram apenas 6%), 23% que existiam “pequenos problemas” e 45% que a democracia em
seus países tem “grandes deficiências”. Enfim, a confiança e a credibilidade da
democracia (e da política) estavam sendo questionadas em praticamente todos os
países da região.

O que se pode constatar com os dados disponibilizados na pesquisa do Latinobarômetro
é que, por diversas razões, entre elas provavelmente as chamadas promessas não
cumpridas das democracias, há um abandono dos cidadãos de apoiar o regime
democrático, com altos índices de indiferença em relação ao tipo de regime político.
Essa descrença nas instituições, habilmente manipulada na campanha eleitoral, pela
direita e extrema direita, associada a uma estratégia usada por um complexo e avançado
sistema de propagação de mentiras via redes sociais explica em parte a sua vitória nas
eleições, capturando o sentimento de frustração e desesperança, se apresentando com
uma retórica de renovação, da nova política, antissistema, explorando ódios e
ressentimentos. E para destruir a democracia.

 

Um aspecto preocupante hoje é que para instauração de regimes autoritários não há
mais necessidade de golpes militares “clássicos” com a justificativa de “restaurar” a
democracia em meio ao caos, ameaças de comunismo etc., como ocorreu na maioria
dos países da América Latina nos anos 1960/70, ou seja, pode-se chegar ao
autoritarismo pela via eleitoral, embora alguns continuem usando a retórica do perigo
do comunismo.

No livro “Como as democracias morrem “ (Editora Zahar, 2018) Steven Levitsky e Daniel
Ziblatt analisam o que consideram como as novas formas de autoritarismo que surgem
no mundo e afirmam que mesmo países com tradição democrática não conseguem se
imunizar em relação ao colapso da democracia.

E argumentam que há outras maneiras de arruinar uma democracia, menos dramática,
mas igualmente destrutiva: elas podem morrer não nas mãos de golpistas, mas de
líderes eleitos que subvertem o próprio processo que os levou ao poder.

Os autores analisam a ascensão de líderes autoritários em alguns países e entre seus
princípios antidemocráticos estão à rejeição das regras democráticas; a negação da
legitimidade dos oponentes políticos; a tolerância ou encorajamento ou incitamento à
violência, ódio e a propensão a restringir à liberdade (de opinião, crença etc.).
A questão é: será que o colapso da democracia é inevitável e irreversível? Creio que
depende de vários fatores, como a mobilização da sociedade civil, resistências no
Congresso Nacional e no sistema de justiça. E também muitas iniciativas importantes
como manifestos em defesa da democracia de diversos setores da sociedade, incluindo
policiais (há pouco foi publicado um manifesto de policiais antifascistas , se definindo
como um movimento supra-partidário e em defesa da formação de uma Frente Única
Anti-fascista). Mas é preciso ir além de manifestos e intenções.

Em meio a tantas ameaças à democracia, mais do que nunca as normas democráticas
devem e precisam ser preservadas. No Brasil, ao longo da história, experiências
efetivamente democráticas não tem sido a regra e hoje lutar pela igualdade e o respeito
à diversidade é um grande desafio, assim como enfrentar o fascismo cotidiano, os
retrocessos sociais, políticos e econômicos.

E para combater o avanço do autoritarismo, os que defendem de fato a democracia
além dos discursos, não devem e nem podem se dividir neste momento, de brigar mais
entre si do que com os que querem acabar com ela. Há muito a ser feito, como um
programa mínimo de consenso que seja viável e não apenas um conjunto de (boas)
intenções. Como disse Marcos Nobre no livro “Ponto final: a guerra de Bolsonaro contra
a democracia” : “Mesmo que a atual crise venha a representar de fato um fim de linha
para o projeto autoritário de Bolsonaro nem de longe isso representará por si só o fim
da ameaça à democracia”.

Conseguir monitorar os riscos à democracia é importante para saber como enfrentar os
retrocessos, como o de catalogar atos e comportamentos que atentem contra a
liberdade, “perceber seus efeitos cumulativos, identificar padrões e informar a
mobilização da sociedade civil em defesa da democracia e das liberdades” como é um
dos objetivos do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo.

*Homero de Oliveira Costa – professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN

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