MISTÉRIOS

Clauder Arcanjo*

 

Mal me lembro do fato em si; não é de admirar que tenha esquecido as circunstâncias que o motivaram e acompanharam.

(Edgar Allan Poe, em “Ligeia”)

 

Veio ao meu encontro. Sentou-se no chão, próximo à minha cadeira de balanço, e pôs em mim seus olhos de mistério.

De início, fingi não dar por sua presença. Continuei a falar com meu tio Manoel acerca da previsão de chuvas:

— E o que dizem os profetas do campo?

Tio Manoel coçou o alto da cabeça, na certa com dificuldade em me dar uma resposta conclusiva.

— Uns, meu sobrinho, preveem um inverno normal. Outros, chuva abaixo da média.

Nesse momento aquele homem emitiu um grunhido com assomos de protesto. Não sei se levado por tal reação, exaltei-me:

— Os profetas estão muito políticos. Há previsão para todo gosto, hein?

Tio Manoel não deu abertura para a polêmica. Sabia-o fervoroso crédulo dos prognósticos dos profetas do sertão. Correspondia-se com vários: desde os mais ligados aos sinais colhidos nas plantas, assim como aqueles que se dedicavam à detecção dos augúrios advindos dos animais da caatinga. O voo baixo dos caburés, a floração do pau-branco, a visita antecipada de alguns tipos de zangões…

— Boa noite. Já vou. São nove horas. Amanhã tenho que me levantar cedo — despediu-se tio Manoel.

— Boa noite, tio. Passo lá no seu comércio para a gente acertar a minha conta.

Mal ele saiu, o homem dirigiu-se a mim com uma voz cavernosa:

— A noite está estranha. Janeiro banha-se com um luar indefinido. Se de madrugada a dama de azul não nos visitar, seu Arcanjo, a invernia não virá e a colheita estará perdida.

Soltou aqueles comentários e nada mais explicou. Como eu não esperava tanta fluência de quem até há pouco permanecera se comunicando em grunhidos, custei a recuperar a voz.

Ele então se levantou e saiu no rumo do cemitério. Em passadas longas, um roupão sobre os ombros, cabeleira farta.

Acompanhei o seu trajeto até sumir na esquina do final da rua. Esquina esta que dava no portão principal do cemitério.

Antes de me recolher, recusei o lanche da noite, causando estranheza a Lídia. Ela me perguntou se eu me sentia bem.

— Nada. Vou me recolher.

No quarto, abri logo a janela e dei com a presença da Lua: encoberta por uma nuvem esgarçada, jogando sobre os telhados um brilho esfumado.

 

& & &

 

Insone, volto à sala. Todos dormem. Sirvo-me de um copo com água gelada. Com pouco, alguém bate à porta.

Ao abri-la, uma ventania corre por entre as minhas pernas, assanhando-me o cabelo e trazendo-me arrepios.

Quando olho para a praça, uma dama caminha em direção à herma do poeta. Ao passar por debaixo do facho de luz do poste, percebo que ela se veste de azul.

As palavras daquele homem ecoam na memória: “Se de madrugada a dama de azul não nos visitar, seu Arcanjo, a invernia não virá e a colheita estará perdida.”

Um relâmpago cruza os céus de Licânia, e um trovão rasga o silêncio da província. Segue-se uma chuva forte, tangida por ventos medonhos. A cidade, então, mergulha numa escuridão profunda.

— Este fornecimento de energia não resiste a nenhuma chuvarada! — protesto.

Antes de entrar, um estremecimento e a impressão de que alguém me observava na calçada.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

Deixe um comentário