Marta foi a primeira a ver a tempestade

Um guarda-chuva chorava

Amparado na varanda

A chuva passada

 

Eu vi Marta içar-se desorientada, olhar pra a fresta da janela pra averiguar que ainda estava escuro, depois pra o relógio que marcava pouco mais de quatro horas. Sonhara comigo, que me via morto num caixão com um pano me cobrindo os olhos pra esconder um buraco de tiro, e acordou com gosto de lamúria na boca. Custou-se na beira da cama distraída com nada, pescando na memória os detalhes do sonho pra depois poder adivinhá-lo. Depois se esticou toda até sentir que todos os ossos da coluna estavam em seu lugar, calçou as sandálias que estavam debaixo da cama e se levantou arrastadamente.

Na cozinha, apanhou um copo e alumínio, encheu com água da torneira e levou pra o altar, retirou do relicário o terço de contas de vidro que herdou de nossa mãe, acendeu as velas, ajoelhou-se como pôde (sentindo o ranger das juntas do joelho) e começou a debulhar a reza, conta a conta, vagarosa de sono, tropeçando nos bocejos que cortavam o maquinismo das preces e encompridavam a obrigação da fé.

Eu fiquei olhando sem nenhuma pressa porque sabia que ela iria esquecer de novo, como se desacostumou a fazer despois de velha.

Apesar de ter sido muito bonita moça, ela nunca quis se casar. Era uma pessoa estranha, meu pai dizia, não gostava de gente, nascera pra virar tia velha, ficar no caritó. Ela acostumou-se a essas coisas que papai dizia como sempre terminava se acostumando a tudo. Mas nenhuma ideia acertou-lhe mais que a de nunca casar, afinal papai estava certo, não gostava mesmo de gente, principalmente de homem. Depois que nossa mãe morreu e alguns parentes foram-se embora pra ganhar a vida longe e se perderam por lá, outros morreram por cá mesmo e ela terminou sozinha nessa casa velha, esquecida do tempo e do mundo.

Como é esquecida a Marta! Só nunca havia se esquecido de mim. Mas o tempo engole tudo e minha ausência não haveria de ficar impune, embora eu sempre estivesse aqui dentro, de certa forma, escondido.

 “Ó clemente, ó piedosa, ó doce sempre Virgem Maria… (bocejo) Rogai por nós, santa Mãe de Deus, pra que sejamos dignos… (bocejo) das promessas de cristo. Amém.”

Eu vi quando ela terminou de rezar e se levantou, fazia um esforço vagaroso pra se pôr de pé apoiada na mesinha do altar. Já guardava o terço de contas de vidro no relicário quando eu, num recurso de um desesperado ante o medo do esquecimento, derrubei o copo de alumínio de cima do altar que se chocou com o chão fazendo um enorme estardalhaço e espirrou água em sua camisola. De primeiro ela se assustava sempre que eu fazia isso, mas agora ela apenas olhava consternada em minha direção tentando adivinhar onde eu estava, como quem dissesse “precisava disso?”.

Ela costumou-se com meu jeito de lhe dizer as coisas como terminava se acostumando com tudo e simplesmente ajoelhou-se de novo, fazendo ranger outra vez o pobre joelho, outro bocejo, e rezou um pai-nosso em minha memória.

Da porta da cozinha dava pra ver que a madrugada sobre Itapundé clareava em um tom estranho de amarelo, como numa foto sépia, prenúncio certo de um temporal.

***

Christi Rochetô  é poeta, artista plástico e prosador. Nasceu em Jardim do Seridó, estado do Rio Grande do Norte, em 1986. Teve seu primeiro contato com a literatura cedo, nas estantes dos tios com quem cresceu. Na adolescência, foi embora para Natal, capital, e encontrou nos mesmos livros e nas artes, o alento para o estranhamento da cidade grande. Mas preservou a voz de seu lugar, da infância, da família, e procura empregar essa voz em suas composições. É autor do livro de contos Sombra Fria – Ed. Patuá (2020).

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