Maria do Santíssimo: quando a arte é imanência

Por Márcio de Lima Dantas

Se alguém fosse escrever uma história das artes plásticas no Estado do Rio grande do Norte teria que obrigatoriamente dar o seu a seu dono, ou seja, outorgar o real valor ocupado por Maria do Santíssimo. Em matéria de arte há que se buscar categorias que são da disciplina conhecida como Antropologia do Imaginário. Assim sendo, a pintora de São Vicente teria que ocupar o lugar que lhe compete, uma vez que uma honesta e não adulatória análise da sua profícua e bela obra sugere passar por categorias daquele domínio do conhecimento. Com efeito, Maria do Santíssimo teria que ser considerada como nossa mais importante artista plástica. Por quê? Porque sua obra emana de uma necessidade individual e coletiva de expressão, uma imanência que por finda a força teria que se plasmar ante qualquer empecilho ou vicissitude.

Um filósofo de tradição aristotélica talvez dissesse que as pinturas aparentemente ingênuas de Maria do Santíssimo resulta de uma energia social buscando de qualquer
maneira ser dínames, signo que advém das regiões pelágicas da mente e não pede permissão a quem quer que seja para plasmar-se em forma de arte.

Do ponto de vista da composição, constatamos uma pintora com pleno domínio do espaço a ser ocupado por elementos tais como burros, capelas, guirlandas de flores e diversas espécies de rosas, cravos, cravinas, dedais-de-ouro, ramagens, como melindres ou ervilhas-de-cheiro. Sim, há inconscientemente uma noção do horror vacui tão caro ao barroco enquanto estilo histórico, quer dizer, todo o espaço da tela deve ser ocupado. Não parece ser à toa que sua pintura tinha um caráter funcional, servia para forrar baús e malas de madeira. Podemos cotejar, sem margem de erro, a pintura de Maria do Santíssimo com a imagética barroca da pintora portuguesa Josefa de Óbidos, cujos quadros se regem por uma lógica ornamental, decorativa, mesmo a sua pintura sacra não foge a esse raciocínio. Com efeito, há uma forte presença do Barroco na obra de Maria do Santíssimo.

Maria do Santíssimo não tinha consciência do que fazia, tampouco da qualidade da sua obra, nem por isso deixa de ser, talvez, tendo em vista um caráter, como aludimos, antropológico, seja nossa mais importante artista plástica. Não à toa a atenção que despertou em críticos eruditos e rigorosos como Walmir Ayala Roberto Pontual, que veio conhecê-la pessoalmente. Com certeza, como boa sertaneja, deve ter franzido muito os olhos quando diante de diletantes ou críticos de arte, o seu interlocutor ao nomear às suas cartolinas pintadas com pincel de talo de folha de coqueiro e usando anilina para colorir os utilitários forros de baús que o esposo vendia anonimamente nas feiras sertão a dentro, insistia em rubricá-la com uma nomenclatura e ela outorgada.

 

Se Dorian Gray é o nosso maior artista plástico, em quantidade e qualidade, Newton Navarro ocupa o lugar de uma importância cimeira na história da evolução de formas no nosso circuito das artes, a saber, foi quem mais contribuiu para que chegássemos a grandes artistas como Vicente Vitoriano e Ítalo Trindade (separando, com puro efeito didático, a linha e os ângulos curvos, dionisíacos, nervosos, de Vitoriano, está para Dorian, como os ângulos retos e abstratos de Trindade está para Navarro) Nesse sentido, a obra de Newton Navarro é superior a de Dorian Gray, o que este fez foi consolidar o que aquele houvera apontado como vanguarda e horizonte, onde as nossas artes plásticas estariam em sintonia com o espírito da época.

 

Por fim, gostaria de lembrar a importância deste livro: um resgate requintado, fiel e honesto de reconhecimento àquela que é o mito fundante, matriz e nutriz, de nossa
tradição naïf Maria do Santíssimo. Já era tempo de termos uma obra que vulgariza e democratiza a biografia e faz conhecer a opulência barroca das obras dessa singular mulher eivada de ethos sertanejo.

 

      

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