Madé Weiner: da atualidade de resignificar técnicas das artes visuais

Por Marcio de Lima Dantas

Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?
João Cabral de Melo Neto *

Madé Weiner (São Vicente, 1949) foi bastante precoce ao seguir o seu
pendor para a arte, aos cinco anos desenhava as tias e o seu jabuti. Não causa
espanto o fato de aos 23 anos, aportar em Londres, com 30 anos inicia seus
estudos sobre arte. Essa permanência conduziu-a a tentar preencher os hiatos
que foram sendo deixados nas rodagens e marginais, como se fossem
impostas pela vida. É então que estuda no Waltham Forest College. Porém,
tudo indica que não conseguia mais mapear onde perdera a calma (Quem tem
alma, não tem calma, Fernando Pessoa), corroborando essa ausência de
tranquilidade, estuda de 1983 a 1985 na Open Foundation Course in Art.

Não seria justo esquecer de arrolar os professores/mestres ao longo de
tempos nos quais a disciplina e o talento outorgaram a tão conhecida boda
que satisfaz não somente uma alma, imprime júbilos nos que apreciam a arte
e fazem do contemplar telas, plenas de pathos, um sal e um condimento para
uma presença no mundo, em busca de um sentido para suas respectivas
existências.

Estudou pintura com Nick Wyndham, Bob Waltman e Keith Mac. Passando
pela cerâmica e tecelagem com Rogério e Anne.

A nossa artista parece não precisar com exatidão o momento no qual houve
a cisão entre uma rotina do que chamam “mulher” e uma tomada de ação que
a conduziu em direção a uma convivência pacífica com uma inquietude da
alma, possibilitando conviver com seus demônios, não havendo outra
solução: a arte é esse chafurdo interior no qual não se procura, todavia acaba
encontrando. Oxalá possamos especular do surgimento dessa personalidade:
a mãe falece aos 22 anos, quando ela caiu no mundo: nascida. Adotada por
Tia Alzira, uma senhora que tinha uma loja de tecidos e costurava como um
alfaiate.

O amanho das tantas técnicas estudadas, ancorou seu talento no pastel seco,
dando à luz a toda uma sorte de representações, quer sejam de torsos nus ou
marinhas. Creio ser necessário uma classificação dos trabalhos da artista.
Vejamos.

Modelo vivo (1), Marinhas (2), Cerâmica de alta da temperatura (3), Pintura
(4): acrílico, carvão, nanquim e pastel seco.

No que concerne ao modelo vivo (1), quase sempre os corpos limitam-se à
retratação do torso. Dificilmente aparece um rosto. Há que lembrar que a
artista não busca comprovar seu domínio sobre a técnica do pastel seco. Os
corpos aparecem em recortes, demonstrando que o interesse não é sobre a
individualidade, sobre a persona de um sujeito, mas sagra a perspicácia de
explorar o volume e a forma por si mesma. Refratando deliberadamente a
ausência de apego à figura de um provável sujeito detentor daquele corpo.
Não existe interesse pelo semblante, basta observar e imprimir no papel os
meandros de um corpo masculino ou feminino, fazendo valer um domínio
sobre a técnica pastel seco, manuseado com grande mestria.

Assim sendo, sua retratação de modelos vivos não se atém tão-somente aos
torsos nus. Há um caderno, dos anos 80, cujas páginas repletas de perfis,
quase sempre masculinos, e com autêntica desenvoltura, manuseando
diversas espécies de lápis e cores, refletem uma desenvoltura com relação ao
desenho acadêmico. Com poucas linhas nuas sobre o papel consegue dar
conta de uma personalidade, através dos olhos ou dos contornos dos lábios,
ou cabelos revoltos.

Com efeito, pode até parecer exagero, mas esses cadernos resguardam um
dos melhores momentos da artista, no que concerne ao domínio do desenho
acadêmico. Na verdade, qualquer retratação interna ou externa, qualquer que
seja o campo de criação artística, sucede aqui uma habilidade com enorme
consciência do que está elaborando.

Vejamos as marinhas (2). Afora de qualquer dúvida, uma das séries nas
quais a expressão estética revela a necessária longanimidade, para que as
razões primárias venham à tona e habite mãos, e pensamentos daquela que
contempla os recortes da natureza. De ânimo pronto, a artista aceita
apascentar formas, volumes, cores e nuances, conduzindo com ordem e
consciência, estabelecendo a necessária relação que o fazer artístico precisa
para vigorar com intensidade, legando aos olhares dos tantos interessados na
compreensão/curiosidade de um vir a ser diferente da realidade a qual
estamos habituados.

Há certas invariantes nas Marinhas. Tudo faz crer de um primeiro plano
evidenciando formações rochosas em cores várias, podendo ocupar 2/3 do
enquadramento. Aqui ocorrem as falésias, formações rochosas ou as dunas
que concernem ao relevo das nossas praias. A artista aspergiu o seu talento
e domínio técnico do pastel seco com grande mestria, mas também é possível
encontrar acrílica sobre tela.

Até certo ponto, lembra-nos, algumas Marinhas Dorian Gray, cujas telas
remetem a uma indecisão entre o figurativo e o abstrato, talvez onde este
pintor tenha atingido sua excelência como detentor de um domínio beirando
a perfeição dos seus gestos, das técnicas e das cores com as quais modelou,
por meio de um compromisso com os pendores da sua psiqué. E assim foi
capaz de plasmar uma série de telas nas quais a indeterminação entre os
planos figurativos e abstratos esplendem diante do expectador a beleza de
sua arte (tekhné).

Sim, há também uma série deveras interessante em Madé Weiner. São as
naturezas-mortas, em acrílica sobre tela, de um requintado primor na
consecução do que parecem ser flores passíveis de causar estranhamento,
pelo fato de não remeterem à botânica nossa conhecida. É o caso de uma flor
em tons azulados, visivelmente riscada com a técnica do pastel seco, rebenta
como se fosse plissada em um tecido, mas não deixando aquele que
contempla sem a ambiguidade da dúvida acerca de que espécie se trata.

Na cerâmica de alta temperatura (3), queimada a 1000º, também conhecida
como cerâmica vitrificada, parece que a artista se sente mais à vontade, sem
os rigores e as exigências de outros meios de alcançar o timbre estético de
uma peça. Nesse sentido, o sentimento suplanta o excesso de cuidados e
consciência necessários a uma feitura subordinada a determinadas leis
deixadas pela tradição, como, por exemplo, no uso do pastel seco, muito
usados pelo Simbolismo e Impressionismo. Sendo aquele que vem ao mundo
como um assinalado, com o farnezinho de articular coisas do espírito (no
caso, aqui, artes visuais), fica com uma dívida para com estilos históricos,
sobretudo os que passam pelas escolas de Belas Artes ou coisa assemelhada.

E se não consegue superar, dado o cabedal de movimentos, vanguardas,
tradições, que estão sedimentados onde se deseja pisar, pode ser que logre
encontrar uma alternativa diferente para ir de encontro a mesmice que repete
o refrão tedioso aos pósteros. Não vale é ser discípulo comedido e sem as
necessárias rupturas para inaugurar uma assinatura singular.

Suficiente deitar os olhos com atenção, para se constatar na cerâmica
vitrificada o predomínio da linha curva. Ausentes de ângulos retos, as formas
orgânicas demonstram sua opulência e maleabilidade, sem a simetria
bilateral ou radial. Há que buscar estabelecer relações com o que se encontra
mais próximo ou determinadas formas a que estamos acostumados. Eis o
surgimento de totens, estelas, fragmentos de fachadas de edifícios. Assim
nos vem o estilo Art Nouveau, o parentesco mais próximo no tempo e no
espaço, na medida em que Madé Weiner morou durante tanto tempo na
Europa, berço desse estilo.

Curioso que a artista usa, e admite, a Cerâmica Vitrificada como espécie de
possibilidade mais amena de expressão. Fica difícil não evocar o Regime
lunar e noturno da deusa Selene, cujos atributos evocam o que fomos
acostumados a compreender como “feminino”, mas que no imaginário não
existe a pureza. Há que compreender onde auras simbólicas envolvem cada
fenômeno, deixando entrever as possibilidades de sínteses entre o Regime
Diurno e o Regime Noturno (Gilbert Durand, As estruturas antropológicas
do imaginário).

A artista abandona provisoriamente os domínios da musa Érato (poesia
lírica), desde sempre sua protetora, e conduzindo-a aos ambientes mais
íntimos, haja vista os torsos nus, na clausura de possíveis alcovas, na qual
corpos masculinos e femininos permitem o olhar atento de quem desenha; os
perfis de rostos desenhados em um caderno, as tomadas da natureza,
salientando aspectos pouco apreciados, ou originais naturezas-mortas. E
saindo, provisoriamente, dessas abordagens que se voltam para o âmago, não
importando se existe um ethos narrativo ou não, compraz-se em ângulos que
detém um valor em si, e não por relação.

Ora, para onde ia incensar outros altares, se não para a musa Calíope
(narrativa, eloquência, cura a melancolia, dom da adivinhação)? À la
recherche de temps perdu, começa a organizar uma série intitulada “Dossiê
do semiárido”, retomando fatos e lembranças da infância, em uma
corporatura que fora depositada em sua mente por um amigo chamado
Joaquim Sabão, que servia de companhia na loja da tia, atualizando-a nos
informes acerca da cidade.

Nos últimos trabalhos é que se voltou, com uma espécie de pressa (o tempo
urge!). Para retratar aspectos e personagens da pequena cidade de onde é
oriunda: São Vicente (antigamente Saco de Luísa), localizada no Seridó,
onde o sol é mais inclemente, nas terras áridas do Rio Grande do Norte. Eis
que surge Zefa, desenhando novas linhas de existir, reconsiderando valores
a que estava habituada, após ser deixada por Abdias.

Houve, antes disso, um affaire entre Zefa e um barbeiro que só vinha à cidade
nos sábados da feira, conduzindo o que chamavam “mala cheirosa”, onde
havia toda espécie de utensílios para se fazer cabelo e barba. Em Zefa ele
dera uma geral, pelos externos e internos. O marido enciumado abandona-a.
Com a ruptura do casal, a mulher é deixada só e com três filhas. Ao que
parece, era vivedeira. Também pudera, nessas terras de vegetação xerófila,
haverá de ser outra coisa que não se reorganizar e enfrentar os dias quentes?

Então, surge, na rua Velha, um novo meio de vida: uma animada casa de
recursos, atraindo os homens da polis, povoada por grande diversidade de
mulheres, aberta só durante a noite, visto que durante o dia trabalhavam na
feitura de redes. O freguês elege para diversão a que tipo de prostituta é mais
condizente com a aura de determinados dias. Mas também pode ser fiel a um
costume, sempre o fascínio por uma sorte de meretriz já conhecida no
alcouce.

A necessidade de organizar as meretrizes na Casa de Recursos da Rua Velha,
através da retratação em telas, parece conter uma pulsão que remetem à
noção de arquétipos, irmanados por força centrípeta, ajuntando as mulheres
e fazendo-as representar no grande teatro do mundo. Necessário papel para
que o palco da vida e suas leis do cotidiano, tenha uma dinâmica. Ainda, o
lupanar acolhia as mulheres que não se enquadravam no status quo de uma
sociedade regida pela necessidade da vigilância e da implacável punição
(Foucaut). Fosse quem fosse, sempre houve o inevitável do outro um tanto
vulnerável, um muito de ingenuidade, o cotidiano como o dia que se achega
com suas errâncias, ser apontado como “anormal”, para que o grande coro
social não desafine. Como era de se esperar, João Sabão recebeu a pecha de
“doido”. Assim se fez, por uma necessidade (dynamis) que rasga as duas
mãos: uma de dentro (psique) e outra de fora, do coletivo (enteléquia).
Emprego livremente a terminologia de Aristóteles.

Com efeito, Zefa, a comandante em chefe do Cabaré, era obesa, para
completar a compleição do que o destino conduzirá a vir a ser uma cafetina,
por não valer no lupanar pelos atributos do corpo, rege-se pela perspicácia
dos olhos e da audição, exclamando seu verbo persuasivo a imprimir valias
do ambiente nos fregueses. Nininha era a dançarina, animando por meio do
corpo e da música o bordel. Lica era mais recatada e misteriosa, talvez por
não se interessar muito pela retórica. Ziruca era a mais falante, um tanto
extrovertida, a eloquência era parte do seu charme. Em síntese, como
dissemos, a musa Tália (da tragédia e da comédia/festividade) regia os
carrilhões que movimentava a cena viva que é o humano em evidência.
Teatro ou circo: quase a mesma coisa.

Deixe ver se ainda posso acrescentar algo. A obra da artista Madé Weiner
configura-se como espécie de inópia, em cuja corporatura subjaz o traço
vincado de uma aproximação com sua história de vida. Mesmo tendo ido
parar em Londres, locus onde aprendeu todo um conjunto de técnicas, e ao
que parece, foi-lhe incutida a necessidade da disciplina, do método e da
consciência de se deixar habitar pelo trabalho para com a arte. Havendo que
lembrar que toda uma constelação de imagens e enxames de símbolos
estavam amainados no seu imo, desde sua infância de órfã criada por uma
tia costureira. Quando juntou as duas pontas do seu percurso, voltando para
si mesma, chegando em São Vicente.

Também faremos a cobra engolir seu rabo. Encerramos como começamos,
com o poeta pernambucano. “Homenagem renovada a Marianne Moore”
(Museu de tudo):

Como saber, se há tanta coisa
de que falar ou não falar?
E se o evitá-la, o não falar,
é forma de falar da coisa?
João Cabral de Melo Neto *

 

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