Kelly Lira: o domínio da cor e a festa dos sentidos

Por Márcio de Lima Dantas

A artista visual Kelly Lira (Pau dos Ferros, 1985), durante sua infância, foi submetida a
um cabedal de bens pictóricos que fizeram florescer no seu espírito algo que, tudo indica,
já pulsava no seu imo. É que tem três irmãos pintores. A menina fora testemunha do fazer
artístico dentro de casa. Como era de se esperar, surge um talento com grande capacidade
de manusear técnicas mistas: spray, acrílica, carvão.

Vejamos, para efeito de análise e interpretação, como podemos classificar o que tivemos
acesso da obra da autora. Há uma bela série com a temática Pescadores. Uma outra de
exímia fatura que podemos classificar de Abstratos. Há também uma série de retratos de
figuras humanas. Por fim, suas sensíveis pinturas sobre cerâmica.

Um dos principais mitos obsessionais da pintora são os Pescadores e seu cotidiano, com
a presença de peixes. A técnica para obtenção dessa ordem semântica, é conseguida por
meio de fotos encontradas em sites da Internet, sendo que a intervenção da autora,
tomando como ponto de partida a foto pré-existente, pode ser compreendida por meio de
duas vertentes. A primeira é a figura onde predominam o preto e branco do pescador,
sendo este centralizado, quase sempre por uma economia de meios, falo sobretudo das
poucas cores. É interessante remarcar o motivo pelo qual se estabelece de maneira. Ora,
as faixas em cores do fundo outorgam um chamado a serem contempladas: são listras
paralelas em cores fortes, conseguidas através de um contraste cuja beleza proclamam o
chamado para os pescadores e suas fartas colheitas de peixes, no implícito manancial
marítimo.

Talvez possamos apontar os Abstratos como os trabalhos nos quais a artista imprimiu
uma marca eivada de um registro mais original. Sem dúvida, eis aqui a pronúncia de uma
sintaxe própria, deixando entrever as capacidades e versatilidades da artista, pois tanto
faz uso com maestria do figurativo, como adentra pelos meandros mais complexos das
composições abstratas. Vejamos como funciona: todo o conjunto de manchas coloridas,
seja em formas de grande espessura ou mesmo de inúmeros formatos, confluem para algo
que numa primeira vista pode parecer aleatório, mas um olhar mais esmerado atesta um
contorno quadrado onde a festa de geometrias e cores expressam uma harmonia. É bom
dizer o quão difícil é organizar uma combinação de tintas e debuxos.

Agora vamos à seriação Retratos. Esta outra forma de mídia evoca fortemente a Pop Art
e seu mais conhecido expoente: Andy Warhol. A partir de uma foto, a artista lança mão
dos paradigmas que lhe são caros (contrastes de cores, listras atrás da figura em evidência,
organização do enquadramento tendo em vista fotografias retiradas da Internet). Com
efeito, manuseia com habilidade, quer sejam o contraste de cores opostas ou
complementares, quer seja fazendo intervenções em retratos bastantes conhecidos. O
resultado acresce o retrato original de uma possibilidade incomum, conduzindo o
expectador a repensar o que é uma obra de arte.

Por fim, é necessário adentrar pelas pinturas sobre porcelana. Existem as peças de
porcelana com pinturas em branco, preservando a forma em sua natureza ocre. Assim,
manuseia a tinta branca, em delicados arabescos, como se fossem rendilhados de labirinto
ou alguma espécie de bordado popular. A simplicidade dessa mídia nos conduz a apreciar
o que fomos acostumados a contemplar em nossas casas, por exemplo, como potes nos
quais cultivamos plantas prediletas, edificando nosso jardim particular. Em síntese, por
meio de uma intervenção extremamente simples, eis que o inusual sagra seu número,
vindo a ser o que não esperávamos. Há também requintadas pinturas em pratos de
porcelana, sendo que aqui persiste uma sobreposição de formas e cores, em um esmero
que evoca sua série de abstratos. Só que lá a espacialização dos elementos mantém uma
distância, deixando espaços vazados na cor branca. Nesses que estamos tratando, não há
tais espaços em branco, pois as cores e as formas preenchem o fundo da porcelana, como
se fosse uma espécie de horror vacui.

O pendor para o universo das artes visuais, na pessoa de Kelly Lira, resguarda uma
didascália que nos conduz a interrogações acerca de como floresce o talento artístico em
uma pessoa. Em parte, alguém já traz consigo o que chamam dom ou a arte é fruto de um
permanente exercício regido por uma estóica disciplina?

Haverá de pensar, quando revolvemos a maneira como emerge o talento em um artista,
se não é justo e bom adentrarmos através de duas vertentes: o que se encontra adormecido,
qual semente aguardando a rega para florescer e frutificar, uma nesga de sol para rebentar
em fulgores de exatitude e beleza, configurando uma outra realidade, para os que não se
importam tanto com o chamado real concreto.

A outra vertente implica uma conduta de olvidar a tessitura do real, com chamados de
sereias para a festa ilusória dos sentidos, que a nada conduzem, essa tal história de
aproveitar a vida. Estou falando da reclusão e do trabalho para produzir a obra de arte
(Há que renunciar a alguma coisa. Machado de Assis). Ora, todo mundo sabe desse gesto
de amor, dessa vontade de plasmar significantes que irrompem impacientes por vir a ser
algo uma grande autonomia, e que só pode ser pelo fato de se bulir no que estava
adormecido.

Em suma, parece mais sensato pensar que o objeto de arte seja um amálgama dessas duas
vertentes, qual um rio com dois afluentes, caminhando para largo, e belo, e pleno de
registros não apenas daquele que imprime contornos, mas também organiza através de
uma singularidade o imaginário de etnias, lugares, distritos do humano, e deságuam em
um estuário fertilizando terras do real, adicionando formas, cores, nomes e números.

Kelly Lira se inscreve com propriedade nessa digressão acima enunciada, ou seja, sua
dicção estética é o resultado de um encantamento de tempos, contemplando as obras dos
seus irmãos. Sua obra ainda incipiente, já disse a que vem. Isso mesmo, veio para ficar
no sistema de artes visuais de Mossoró, acrescendo de maneira ímpar e singular às artes
plásticas do Rio Grande do Norte uma obra detentora de um registro universal.

 

 

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