Jô Soares tinha uma história de amor com a língua francesa

A morte de Jô Soares provocou reações em todo o Brasil, onde seu talento e polivalência foram lembrados por todos. Mas o apresentador, ator, diretor e escritor também era poliglota, com uma queda pela língua de Molière, que fez parte de sua formação quando vivia na Suíça. Uma proximidade que marcou sua relação com a literatura e o inspirou para seus próprios livros.

Texto por:Silvano Mendes RFI

Jô Soares sonhava em ser diplomata, antes de ser alçado pelo humor. No entanto, sua sede de cultura e sua visão internacional nunca o deixaram. Ainda que ele falasse inglês, italiano e espanhol, além de “arranhar” em alemão, era no francês que parecia se sentir mais à vontade. A prova está em algumas entrevistas que realizou em seus programas no Brasil, como ao receber a atriz francesa Isabelle Huppert, em 2014, e bater um longo papo na língua de Molière, como se estivessem em um bistrô parisiense, em uma conversa imperdível para qualquer cinéfilo.

O francês também permeou seus personagens, como Sebastião, codinome Pierre, que fazia parte do programa de televisão Viva o Gordo, na década de 1980. Inspirado nos últimos brasileiros exilados na capital francesa por causa da ditadura, “Sebá” telefonava tenso para falar com a mulher no Brasil, em uma mistura de português e francês com sotaque nordestino que podia ser entendida mesmo por quem não falava o idioma.

J’ai disquê le DDD!”, se agoniava o personagem ao pedir a ligação para a “telefoniste”, ironizando a alta do dólar e os clichês sobre os exilados – como a dificuldade de adaptação ao frio europeu –, mas também mostrando, com muito humor, a facilidade de Jô em pular de um idioma para outro.

Apenas quem domina um idioma de verdade consegue brincar com as palavras, inclusive cometendo erros propositais. Como quando Jô publicou em 2019 uma carta aberta na imprensa, dirigida ao presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, após o chefe de Estado ter cogitado nomear um de seus filhos embaixador. Em um francês intencionalmente aproximativo, com vários erros de grafia para facilitar a compreensão dos não francófonos, ele dizia: “Quel idé genial de nomé votre fils come ambassadeur (…) Afinale des contes, nous devons aproveité les opportunités que la vie nous oferece” (sic).

Marchinha de carnaval em francês

Essa fluência e essa ironia, que sempre agradaram os franceses que o encontravam no Brasil, também impressionaram quem o entrevistou durante suas passagens por Paris, principalmente quando seus livros começaram a ser traduzidos na França. Em 1997, no Bouillon de culture, uma referência entre os programas de televisão franceses sobre literatura, apresentado por Bernard Pivot, Jô tirou risadas do público ao ajudar a traduzir, ao vivo, junto com o escritor francês Jean d’Ormesson, a letra da marchinha de carnaval “Mamãe, eu quero”.

“Eu fui estudar em Lausanne [na Suíça] quando tinha 13 anos”, contou Jô Soares nos estúdios da RFI em 2013, quando lançava a versão francesa do livro “As esganadas”, publicado pela editora Deux Terres com o título “Les yeux plus grands que le ventre” (Os olhos maiores do que a barriga, em tradução literal). Durante a entrevista à jornalista Letícia Constant, ele se orgulhava de ter alguns de seus livros, como “O Xangô de Baker Street”, na lista dos best sellers da França.“Como eu tenho muitos vínculos culturais com a França, para mim é um prêmio, quase uma recompensa cada vez que um [dos meus livros] é publicado aqui”, disse o escritor.

Jô estudou em um colégio na Suíça dos 12 aos 17 anos, onde mergulhou na literatura em francês. “Eu li Proust desde cedo. Me lembro que quando vim à França aos 21 anos fiz questão de fazer um percurso por onde o Proust andava”, contou à RFI.

Ao ser questionado sobre seus escritores franceses favoritos, elencava uma lista de peso: “Gosto do [Albert] Cammus, claro, e de um autor, hoje em dia não tão conhecido, que é o Boris Vian. E gosto, por estranho que pareça, de um autor que se chama [Joris-Karl] Huysmans. Mas é difícil escolher um.”

Jô não escondia a história de amor que tinha com a língua francesa e como esta o ajudou na sua readaptação ao voltar para o Brasil. “Enquanto os outros alunos tinham muita dificuldade com os verbos e concordâncias, eu tirava de letra, porque em francês era muito parecido”, explicou. “Me ajudou muito a escrever bem em português”, confessou.

 

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