Houve um dia uma eleição

@alexmedeiros1959

Hoje faz 41 anos da primeira eleição direta para governador após o governo militar implantado em 1964 e também primeira com participação pluripartidária depois do Ato Institucional nº 5 de 1968. Uma das coisas mais românticas da vida estudantil naquele 1982, além do sexo estimulado com cerveja, maconha e filmes russos, era que a minha geração acreditava piamente que para endireitar o mundo teria que haver uma revolução pela esquerda.

Nem foi preciso o general João Figueiredo ameaçar prender e arrebentar quem ousasse negar a democracia para que nós, armados de espírito público e hormônios privados, nos espalhássemos pelos partidos esquerdistas que se apresentavam no novo contexto. Quando as legendas passaram a foice nas faculdades do país, a grande colheita coube ao estreante Partido dos Trabalhadores, criado no frescor das greves operárias do ABCD Paulista (Santo André, São Bernardo, São Caetano e Diadema).

O general Golbery do Couto e Silva, mentor intelectual da redemocratização “lenta, gradual e segura” – a quem Glauber Rocha já havia classificado de “gênio da raça” – teria sido também idealizador de um partido de grevistas.

Se o líder sindical Lula era ou não obra do bruxo militar, naquela época isso não foi questionado pela moçada que sonhava tomar o poder ouvindo Ivan Lins, Milton Nascimento e as lacrimosas canções do engajado Gonzaguinha.

Das drogas que experimentei na juventude, a que me livrei mais rápido foi a militância na esquerda. Eu estava entre os poucos mais de trinta rebeldes do novo partido que se reuniam no pátio do Curso Delta, na Parada Metropolitana.

Logo apareceu um troco para o aluguel de uma saleta na Rua Auta de Souza, onde eu e Moisés Domingos dividíamos os dois expedientes e também a missão de distribuir exemplares do jornal Movimento e receber as assinaturas.

No ano eleitoral, veio uma sala maior, na Praça Padre João Maria, assoalho de madeira carcomida por tempo e cupim. Era vizinha dos alcoólicos anônimos, o que era uma referência pra maioria de nós, muitos clientes do Beco da Lama.

Foi naquela sala de traças e transas que o partido deu o pontapé para encarar a “eleição burguesa”, depois de uma aventura dos garotos e garotas que se enfronhavam pelo interior e bairros da capital do estado em busca do filiado perdido.

A orientação da Executiva Nacional era cumprir na marra a Legislação Eleitoral, que nós dizíamos elaborada para excluir as esquerdas. Um mutirão filiando em série, de porta em porta, na base da eloquência e da simpatia de juventude.

Tínhamos que convencer o cidadão a assinar a ficha de filiação para ajudar o Brasil a ter um partido dedicado aos trabalhadores, aos jovens, às mulheres, ao povo humilde e a puta que pariu em geral. Depois disso, preenchíamos o resto.

O clima de rivalidade entre partidários de Aluízio Alves e José Agripino já era enorme naquele semestre de 1982. Ficaríamos fora da disputa se não tivéssemos o número mínimo de diretórios ou comissões provisórias.

Daí a urgência de uma legião de militantes cartoriais para cumprir os rigores da Lei. O próximo passo era realizar as convenções, tarefa dolorosa de reunir aqueles que só para filiar já havia sido uma odisseia.

Eram necessários ao menos 21 diretórios formados, do contrário necas de candidaturas. Para enfrentar o jovem engenheiro e o mito, escalamos o jornalista bom de briga e de verbo, o saudoso Rubens Lemos.

Na velha nova sede recebemos o observador eleitoral para a convenção de homologação dos candidatos; clima de júbilo com alguns já imaginando a surpresa na cara de “araras e bacuraus”.

O funcionário do TRE, coitado, socorreu nossa ignorância ensinando o começo, o meio e o fim de uma convenção. Começava pela ata, que teria no final as assinaturas de todos os integrantes do diretório regional.
Alguém sussurra “epa” e lembra que boa parte dos dirigentes estava nas convenções do interior, onde nenhum filiado sabia sequer porque estava inscrito no partido. Pânico no recinto. E agora, companheiro?

O homem da Justiça Eleitoral estava só aguardando as assinaturas para levar a ata e oficializar nossa entrada no jogo. E só tínhamos ali dois ou três dirigentes. Assumi a redação e peguei uma caixa com as fichas dos filiados.

Lembrei do ginasial no colégio Winston Churchill, onde eu imitava a assinatura de papai numa notificação sobre alguma rebeldia cometida e denunciada por Dona Áurea ou Dona Salete, as coordenadoras do rígido diretor Orneles.

Um grupo de militantes fez uma rodinha com o observador eleitoral no meio, que ficou entretido por bons e longos papos de trabalhadores e acadêmicos. Na minha frente, uma a uma, as fichas dos dirigentes e suas assinaturas.

A Bic deslizava numa velocidade de “slow motion” enquanto militantes ateus imploravam à estátua de João Maria pelo êxito do meu crime eleitoral, hoje devidamente prescrito. Imitei dezoito assinaturas dos colegas ausentes.

A entrega solene da ata – sem que o paciente e solidário observador soubesse da fraude – foi seguida de olhares assustados, expectativa de pênalti em final de campeonato. Quando ele colocou debaixo do braço e partiu, hip hip hurra.

Rubão foi candidato a governador com o número 3, eu saí a vereador sob número 3642 e ganhei o auxílio luxuoso de Miranda Sá e Marcos Ottoni que usaram a superestrutura publicitária de Agripino para me dar o material gráfico mais bonito do PT, diagramado por Carlos Soares, e que gerou ciúmes no partido e sua unidade mimeografada.

Há velhos remanescentes daqueles anos, ainda insistindo em acreditar na putaria que da ideologia esquerdopata, que deve achar que todas as ilegalidades petistas ao longo de quatro décadas começaram nas 18 assinaturas que falsifiquei. Quem sabe? Droga vicia!

Transcrito da Tribuna do Norte, edição 15.11.23

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