Histórias Tristes Envolvendo Artistas Populares

Gutenberg Costa – Escritor e folclorista.

O conceito de artista popular é muito amplo, que vai dos que ficam se apresentando nas praças e feiras, aos desconhecidos que são ligados ao folclore, como os brincantes e mestres de grupos folclóricos. São os que não atingiram a fama e a mídia. Geralmente cantam, tocam e dançam como meio de sobrevivência em pequenas comunidades. Quase sempre passam por dificuldades financeiras e vivem relegados e esquecidos da imprensa e do poder público.

Mais ou menos explicado o assunto de hoje nessa introdução, esses artistas populares sofrem todo tipo de pressão em seu meio ou influência da moda, e até das religiões. Abandonam suas artes por necessidade financeira e passam a viver de outras profissões em cidades grandes. Mudam de religião e logo são recomendados, com autoritarismos para não mais se envolverem em coisas ‘satanizadas’. Para alguns religiosos, as artes só agradam aos ‘diabos’ e não a Deus. O ‘Deus’ deles, não gostam dos artistas e sim de seus salários e aposentadorias. Quantos artistas populares não queimaram suas malas recheadas de objetos de seus abençoados trabalhos. É a inquisição moderna da ganância monetária do século XXI. Absurdos em nossas portas e vidas, praticadas por aqueles filhos e filhas das antigas raças de víboras. Existem grupos folclóricos que são proibidos de entrarem em algumas igrejas Católicas, com suas vestes e instrumentos. Suas danças são amaldiçoadas por muitos padres e pastores evangélicos. Eu ia com o saudoso amigo Monsenhor Expedito Medeiros nas casas das rezadeiras e dos mestres de grupos folclóricos. Era um santo compreendendo e apoiando seu santo rebanho. Sem discriminações e racismos de espécie alguma.

Sou de uma escola humanística no estudo do Folclore e Cultura Popular, vendo os mestres Veríssimo de Melo e Deífilo Gurgel, preocupados com a panela e o bolso dos mestres e brincantes. Primeiro o pirão com fartura e depois o diploma e a festa. Quando fui entrevistar o saudoso mestre de Bambêlo Severino Guedes, em 1993, na Rua Presidente Sarmento, 889, no meu Alecrim, o encontrei velho, cansado e sem convites para seu grupo folclórico. Neto de escravo, alto e forte. Estava na ocasião meio adoentado e as paredes de sua casa rodeadas de diplomas emoldurados. O mesmo recebeu-me com alegria, contou muitas histórias, aceitou ser fotografado e ainda chorou quando recordou seu compadre e grande amigo, prefeito Djalma Maranhão, que o visitava sempre nos dias alegres e tristes. Chegava de surpresa em sua morada e com ele tomava café feito na hora. Depois de Djalma, mestre Guedes, disse-me não ter visto mais prefeito em seu chão. É assim mesmo. E eu queria que alguém me dissesse, o motivo que faz os políticos, só irem ao encontro dos artistas populares, em épocas de eleições. No passado natalense, a negra ‘Bibina’ e ‘Paulo’, eram dois mestres com raízes familiares africana de grupos de dança conhecida como Coco de Zambê. Em suas épocas, sofreram prisões policiais e foram maldosamente taxados de ‘feiticeiros’ pelos religiosos que viviam com ar de santidade em seus rituais.

Um dia eu e Severino Vicente viajamos acompanhados de uma pessoa que não quis entrar no casebre simples de um mestre e ficou no sol na calçada. Ao sairmos depois da prosa e café, o velho mestre o vendo ainda na sua porta, lhe disse com coragem e bem oportuno o seguinte: “Doutor o senhor não entrou em minha choupana com medo de pegar pobreza foi? Pobreza não se pega não, viu seu doutor”. Meus cursos universitários não me ensinaram esclarecer o que é ser rico na vida. As verdadeiras riquezas eu aprendi mesmo com os artistas, mestres e brincantes. Só eles sabem a arte de viver feliz apesar de tantos sofreres. Riem e ainda zombam de suas próprias desgraças. O pobre do tal doutor eu não sei que caminho seguiu, só sei que nunca mais quis andar conosco, para não tomar café coado no pano, ouvir belas histórias e aprender sobre tudo na vida, como faziam Câmara Cascudo, Mário de Andrade e Ariano Suassuna, entre outros monstros consagrados do saber que iam ao encontro dos artistas populares.

Conheci bem de perto o famoso mamulengueiro Zé Relampo, que vivia catando lixo na Zona Norte de Natal, em uma velha carroça. As vezes ia ao encontro de Deífilo Gurgel, quase uma hora da tarde ainda sem tomar um gole de um cafezinho. Era um tipo branco, magro de andar desengonçado. Alegre e exímio contador de histórias. Passava fome e se foi desta, vítima de atropelamento na mesma região em que vivia, sem ser reconhecido pelo poder público e sem ter pensão especial alguma em vida de nenhum órgão governamental. Quando o palhaço Faísca do Pastoril, outro famoso partiu, abatido e alcoólatra, eu perguntei ao amigo Deífilo qual teria sido a causa mortis e o velho folclorista muito revoltado e com a voz embargada me disse ao telefone: “Amigo Gutenberg, o que verdadeiramente matou o grande Faísca, foi o ostracismo cultural!”.

Desde então, sempre que se encanta um famoso mestre de grupo folclórico ou artista popular eu nem pergunto a causa aos familiares. Já sei que foi literalmente da desgraça e injusto ‘ostracismo cultural’, que mata devagarinho, sem convites para apresentações e sem visitas as suas casas. São os abandonados pelos ‘doutores’ ou ‘doutoras’ que ficam nas calçadas e não querem entrar em seus terreiros, ouvi-los e saberem de suas agruras e apertos. São os ‘Pilatos’, que lavam as mãos e fogem da cultura popular, feito o diabo da cruz.

Uma certa feita eu encontrei o famosíssimo embolador de Coco, ‘Cachimbinho’ em João Pessoa, capital da Paraíba, já se dizendo ‘salvo’ e com novo nome de ‘irmão Tomás. A sua dita e criminosa Igreja, não aceitava mais o mesmo gravar seus discos e cds, com suas emboladas divertidas. Segundo os pastores, eram canções do diabo. Ainda bem que não dei de cara com os ditos criminosos assassinos da arte popular e seus artistas. Não adiantou minha pregação sobre esses novos demônios para o velho Cachimbinho, pois o mesmo já estava de alma lavada e enxaguada de santidade, como diria o então prefeito Odorico Paraguaçu. Estando uma das vezes, na querida terra de Mossoró/RN, dei de cara com o famoso e liso Waldemar dos Passarinhos. Saudoso músico artista. Era quase 16 horas e segundo o mesmo, não havia colocado um gole de café naquele dia em sua boca. Então levei-o as pressas a Gauchinha para amenizar a palidez daquele que até disco vinil havia gravado. Nessa hora, em pleno século XXI, quantos não estão nessa situação deplorável? Teria mil histórias para lhes contar em quase cinquenta anos de estrada e muita miséria vista com nossos mestres, brincantes e artistas populares.

E isso tudo é para terminar com uma bem quentinha que me ocorreu agora bem recente, em 26 de agosto, quando saí de minha casa com a barba muito longa e fui até o centro de Nísia Floresta, na casa e barbearia do amigo Luiz, para cortar pelo menos a metade. Luiz é músico popular que toca vários instrumentos. Antes da pandemia fazia apresentações quando era convidado por amigos e bares. Pois bem, lá chegando vi o sanfoneiro se despedindo de sua companheira, a sanfona vermelha. O mesmo já havia a vendido por 3 mil reais para gastar em serviços com pedreiros em sua casa. Não teve outro jeito e lá se foi a sua sanfona. Quem não tem cão, caça com gato. Vai se os anéis e ficam-se os dedos! Juro que fiquei muito chateado e indignado com tal situação. Nada pude fazer a não ser escrever e denunciar tal situação tão triste, que é um artista vender seus instrumentos para resolver seus problemas financeiros. Espero que apareça um rico ou empresário, para lhe dar uma sanfona do tipo ‘maroca’, aquela que nem se vende e nem se troca!

Não tem jeito, eu sempre estou vendo hoje o que via quando tinha os cabelos pretos e não usava barba. Passou o tempo, a tecnologia avançou assustadoramente, mas as misérias, são as mesmas, ou até piores!

 

Setembro. Morada São Saruê, Nísia Floresta/RN.

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