ENSAIO FERNANDO PESSOA III – Uma breve conversa sobre Fernando Pessoa e sua arte de “outrar-se”

pessoa 3Discorrer acerca do fenômeno da heteronímia em Pessoa pressupõe,antes de tudo, comprar a estória de cada personagem com vida própria, a assunção das identidades com data de nascimento e óbito, a existência autônoma no mundo da vida. Cada heterônimo traz consigo fôlego, vontades, personalidade, biografia, fato esse contrário aos pseudônimos, que tem por missão única camuflar ou esconder a autoria. Detenho-me na fala dos três mais expressivos para a crítica literária, em ordem meramente arbitrária: Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Fernando Pessoa- ele mesmo.

Para início de conversa, escolhi falar sobre o poeta vanguardista Álvaro de Campos. O viajante, engenheiro e adicto Álvaro expressa o humano tentando desprender-se das correntes da tradição e com o dito convencional. Prefere antes à noite e a contravenção lunar que a perseguiçãode Apolo, do dia e dos ideais hedonistas. Questiona a multiplicidade na existência ao afirmar em “Opiário” que as vidas ocidental e oriental se equivalem, tendo aí forte teor de tédio. Para ele, o homem estaria preso a um destino comum, onde só o ópio, a noite e a bebedeira fariam menção de obliterar; ainda assim, parcialmente.Seria o mais próximo do fluxo de consciência visto no romance inglês, assim como lembra a heteroglossia de Bakhtin e o que é visto paralelamente no discurso de Dostoievski e o fenômeno da polifonia, dadas as devidas proporções.

O árcade Ricardo Reis, de formação latinista, espirito ligado às tradições clássicas, tem em sua poesia a regência do epicurismo, da moderação dos prazeres humanos. Assim como nas inscrições literárias árcades o carpe diem é sua filosofia e missão. Ao rejeitar as emoções e sentimentos exacerbados, se aproximou do estoicismo enquanto estilo de vida e neste ponto destoa completamente de Álvaro de Campos. No olhar para a natureza se aproximou de Caeiro, porém distinguiu-se na simpatia que desenvolveu pelos tratados filosóficos. O gênero ode é eleito pelo poeta como predileto, onde exalta a contemplação. Este, diferente de outros heterônimos, não teve data de morte definida, deixando assim uma aura de mistério e infinitude na sua obra.

Alberto Caeiro é tido como o mestre de Fernando Pessoa, e, tendo surgido numa torrente de inspiração é representante do bucolismo, da inspiração pastoril. Dos que aqui estão listados é o de origem mais humilde e talvez por isso tenha melhor captado a tese que estamos limitados a captar o mundo pelos nossos sentidos, sem pretensões metafísicas ao afirmar no poema “O guardados de rebanhos” que inaugura sua obra e sintetiza sua essência “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos”

Cada heterônimo tem pontos de contato e divergências e Fernando Pessoa- ele mesmo parece figurar como maestro, orquestrando a tessitura de sua obra. Fernando Pessoa- ele mesmo define seus heterônimos como amigos conhecidos que nunca existiram em carta a Adolfo Casais Monteiro. Ora pelo viés psicológico ora pelo fenômeno discursivo-literário, o nome Pessoa parece ter se pulverizado em seus outros. Nas leituras que fazemos de Pessoa, vemos o homem do seu tempo em conflito com o poeta além dele. O modernismo exaurido em seus versos transparece o cansaço de si e seus muitos. Temos na declaração do eu-lírico pessoano de sua não ciência em quantas almas carrega o álibi para entender sua poesia por uma lógica subvertida, talvez a la Campos, enxergando em cada entidade dele originada uma vida interior concretizada nas palavras.