DIÁRIO DA QUARENTENA VII

Bem difícil é suportar a chuva ao anoitecer, sem que os sapatos se molhem ou a alma se encharque nas lembranças da infância guardada em velhos baús. (José Santiago Naud em “Elegia da chuva ao anoitecer”)

Voltou debaixo de uma fina chuva. Apesar de todos os cuidados para os sapatos novos não se molharem, o rosto os banhou de lágrimas, disfarçadas de chuva.

Frente à casa, baixou a face e sentiu-se encharcado com as lembranças da infância. Onde estará Rosinha? E Seu Moacir, com a sua bodega de secos e molhados?

Antes de subir a calçada, deu pela presença da cadela Baleia, coberta pela sarna e cega pelos anos.

— Neguinha!…

Ela grunhiu, como se o latido de boas-vindas lhe custasse muito esforço.

Neste exato instante Delmir concluiu que voltara tarde, muito tarde.

 

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Ao apresentar projetos e planos para o futuro da província, os eleitores não lhe deram atenção; mas, quando subiu no palanque propagando exageros e ferindo os adversários, a torto e a direito, sem base nem um sequer fundamento, a multidão saudou-o em festa, como o “eleito”.

A verdade em terra que zela a enganação é motivo de repulsa e ojeriza.

 

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Ao descer dos tamancos da presunção, viu-se no pântano particular do próprio engodo.

 

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Acreditava tanto na própria mentira que apostava mundos e fundos contra si mesmo.

 

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— Quando a chuva cair, sairemos para dançar! — prometeu-lhe. — É muito mais romântico, querida — arrematou.

Ao entardecer, o nascente com pesadas nuvens. Ela, faceira e airosa, pôs o melhor vestido e cobriu os lábios de batom carmim.

Narciso, revoltado contra a previsão do tempo que anunciara uma noite sem chuva, fingia-se febril.

— Li no Almanaque Capivarol, meu bem, que um bom banho de chuva faz cair a temperatura do corpo. E o Almanaque nunca me decepcionou, queridinho!

 

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“O maior gênio da nossa raça é o de língua presa!” — concluiu o velho Melchíades, cansado de presenciar o desfile de gabolices dos intelectuais de araque nos saraus de Licânia.

 

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Todo poema religioso tem um cadinho de pecado. Assim como toda iniquidade traz em si a utopia da remissão.

 

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Se um dia te faltar a humildade, rogarei aos Céus para abreviar o teu tempo sobre a Terra. O Inferno sempre anda carente de “anjos”.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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