Diálogo com Clarice Lispector

(Clarice Lispector, por Carlos Scliar)

 

O que saberás de mim é a sombra da flecha que se fincou no alvo. 

(Clarice Lispector, em Água viva.)

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     — É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. 

     — Não, Clarice: Aleluia grito eu… 

     — A palavra é a minha quarta dimensão. 

     — E eu em seus escritos, Clarice, quase a perder a minha dimensão. Pouco me importo: submergir entre os meandros da sua narrativa me faz sentir mais necessidade do sublime, daquilo que não conseguimos captar no que antes nos fora dito. 

— Silêncio que se revela, amiga, ao exercitarmos o poder de harmonizar: palavras, frases, construções… Numa tessitura em que o silêncio se revela quanto mais imbricado (e profundo) for a trama “pintada”. Faz sentido? 

     Esta é a vida vista pela vida. Posso não ter sentido mas é a mesma falta de sentido que tem a veia que pulsa. 

     — E a sua fabulação, Clarice, traz-nos uma pulsação singular: como se o corpo participasse da leitura, da decifração do escrito. Admiro-a cada vez mais, pois bem sei o que aprendi com o seu “oblíquo voo”. 

     — Ouve-me, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que eu te falo e sim outra coisa. 

     — Entre uma coisa e outra, na franja do inominável, busco me reencontrar. Se eu me acharei ou não?! Aprendi com você a mais me indagar do que a me responder: “será que consigo me entregar ao expectante silêncio que se segue a uma pergunta sem resposta?”. 

     — Ninguém saberá de nada: o que sei é tão volátil e quase inexistente que fica entre mim e eu. 

     — E quanto há de mistérios neste seu fosso pessoal, Clarice! Um mundo delicadíssimo a ser explorado, decifrado e sentido. Mas sem pressa e sem afoitezas vãs. 

     — Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada. 

     — Essa sua frase, depois de lida, relida e sentida, traz-me um cadinho de distrações; então navego nessas vacâncias e pressinto, como um peixe a morder a isca, que me entregarei ao oceano dos seus mistérios. Claricianamente incorpóreos e, por que não dizer, indecifráveis. 

     — Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos relógios. 

     — Os dicionários e as gramáticas não bastam para decifrar tantas construções, sintagmas ou exorbitâncias que recolho ao ler os seus livros. Precisa-se de formuladores de novos regramentos: o mundo da escrita e da fala, pobre e supérfluo, nunca lhe foi suficiente. 

     — Luto por conquistar mais profundamente a minha liberdade de sensações e pensamentos, sem nenhum sentido utilitário: sou sozinha, eu e minha liberdade. 

     — De agora em diante, seguirei nem tão sozinho assim: eu e sua obra, Clarice. 

 

Fonte: Água viva, de Clarice Lispector (Rio de Janeiro: Rocco, 2015). 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras

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