Derretimento histórico na Antártida e recorde de temperatura na Argentina acendem novos sinais de alerta

Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

A semana que se encerra acendeu dois sinais de alerta na Argentina e no Atlântico Sul com consequências para todo o planeta: cientistas constataram que o gelo marinho da Antártida diminuiu numa proporção gigantesca. O fenômeno vem à tona no mesmo momento em que os argentinos sentiram as temperaturas mais altas da história para esta época do ano, quando costumeiramente parte do país é coberta por neve.

No verão, todos os anos, uma parte do gelo marinho da Antártida diminui, mas tende a recuperar, no inverno, o tamanho original, medido pelos cientistas desde 1979. O mínimo acontece entre fevereiro e março, enquanto o máximo é atingido em outubro.

Desde 2016, no entanto, a recuperação não tem voltado ao patamar anterior. Neste ano, para piorar, o derretimento acendeu um alarme global: o gelo marinho da Antártida encolheu 2,6 milhões de km2, o equivalente a todo o território da Argentina, o oitavo maior país do mundo.

Em julho passado, a média de gelo marinho foi de 11,7 milhões de km2, enquanto a média para julho entre 1980 e 2010 foi de 14 milhões de km2.

“É chamativo que o gelo marinho esteja tão menor, mas nenhum cientista pode dizer que é devido à mudança climática. Não sabemos se o gelo marinho vai recuperar a sua dimensão. Ainda é cedo para afirmar se haverá uma anomalia de calor que persistirá no tempo. Para afirmarmos, precisamos de médias e de tendências que se mantenham por mais de 10 anos”, explica à RFI o doutor em ciências geológicas e especialista em geleiras, Lucas Ruiz, investigador do Conselho Argentino de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet).

Diferentemente do Ártico, onde o gelo marinho tem uma relação direta com o aquecimento global, na Antártida essa relação ainda não ocorre, diz o especialista. “O hemisfério Norte é principalmente continental, enquanto o gelo antártico está rodeado de oceanos, dependendo, assim, mais das correntes oceânicas e do vento”, compara Ruiz.

Gelo antártico regula temperatura da Terra

Os cientistas também ponderam que 2023 é um ano sob o efeito do El Niño, que gera anomalias de calor. Porém, nos últimos 44 anos, desde começaram a medir o tamanho do gelo da Antártida, nunca se viu tamanha perda.

Sob extremo frio, a água e o sal do oceano separam-se, permitindo a formação do gelo marinho da Antártida. A perda dessa proteção acelera o aquecimento global. O gelo da Antártida reflete os raios solares de volta ao espaço, evitando que o planeta se aqueça. Com menos gelo, a incidência solar é absorvida pelo oceano, aumentando a temperatura global.

“A superfície de gelo reflete mais de 90% da energia que recebe do Sol, devolvendo a radiação à atmosfera e impedindo que o planeta e o oceano se esquentem. Se o gelo marinho diminuir, isso favorece a mudança climática. O oceano só reflete entre 20% e 30% da energia solar”, adverte Lucas Ruiz, também chefe do grupo de Glaciologia Hidroclimatologia Andina do Instituto Argentino de Nivologia, Glaciologia e Ciências Ambientais (Ianigla).

El Niño e mudanças climáticas pairam sobre a Argentina

Outro fenômeno desta semana uniu o efeito El Niño às mudanças climáticas. Nesta época do ano, a Argentina costuma conviver com ondas de frio polar que deixam boa parte do país coberta de neve. Desta vez, o que se viu foram temperaturas de verão em pleno inverno.

Várias cidades da Argentina tiveram temperaturas entre 35ºC e 37ºC. Buenos Aires, por exemplo, atingiu os 30,1ºC na terça-feira (1º), marcando o recorde para esta época do ano dos últimos 117 anos, desde que a medição começou.

“Nesse caso, podemos dizer que estamos diante de uma combinação de mudança climática como resultado da queima de combustíveis fósseis que geram o efeito estufa e as atuais condições do El Niño. Por isso, temos esses recordes absolutos”, indica Lucas Ruiz.

“Tanto calor é consequência da sobreposição de duas coisas: o fenômeno El Niño que gera invernos mais cálidos e uma tendência de mudança climática que gera episódios cálidos dentro do inverno”, reitera a doutora em Ciências da Atmosfera, Matilde Rusticucchi, investigadora do Conicet.

Quebra frequente de recordes

Os cientistas advertem que o país terá ondas de calor pelos próximos três meses e que, devido às mudanças climáticas, essas ondas serão cada vez mais frequentes.

“Ainda não temos previsão para o próximo verão, mas a tendência para os próximos três meses é de temperaturas mais elevadas. Vamos entrar numa primavera com anomalias positivas de temperatura”, antecipa Rusticucchi.

“Existem condições próprias da atmosfera que, às vezes, geram eventos extremos. O problema é que, com o aquecimento global, os eventos extremos são e serão cada vez mais frequentes e cada vez mais intensos. Vamos quebrar novos recordes com cada vez mais frequência, a menos que consigamos diminuir a nossa contribuição de gases de efeito estufa na atmosfera”, indica Lucas Ruiz.

Como prova da aceleração do ritmo, a última vez que a temperatura bateu um recorde na Argentina durante o inverno foi em 21 de agosto de 2014. Para encontrar outro pico de calor é necessário recuar a 1° de agosto de 1942, quando a temperatura chegou a 24,6 °C. São 5,5ºC a menos do que o registrado na semana que se encerra. Em Buenos Aires, a temperatura média máxima em agosto é de 18ºC.

Normalmente, no verão, a Argentina é atravessada por quatro ou cinco ondas de calor. No verão passado, no entanto, foram dez ondas de calor. Pela primeira vez na história, a capital do país enfrentou 15 dias consecutivos com máximas acima de 32ºC. Os primeiros dez dias de março registraram temperaturas 10ºC superiores ao normal. O último outono teve uma média de temperatura 1,27ºC acima do normal.

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