CONFIDÊNCIAS A ROSA

Clauder Arcanjo*

Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor
concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre — o senhor solte em
minha frente uma ideia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos,
amém!
Nesses desmundos, entre nonadas e inferências, eu afirmo, Guimarães Rosa
(se é que você me permite a presunção do dedo da afirmação), que o bicho-
homem anda imbricado com o cão caolho. Ou seja, pensa torto, rastreia um
nadico de nada e já faz carreira com um discurso ligeiro, raso e pouco, porém
com o arroto da certeza. Desses, eu quero distância, arreio o burro e meto
léguas entre eles e eu.
Viver é muito perigoso… Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode
já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens!
No caminhar da vida, certos companheiros valem a poeira alumiada que a vida
nos faz de fole. Conversa macia e certeira, às vezes tramada num despautério
de sabença primaveril, tão grande é o florear da narrativa.

PÚBLICA

Moço!: Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja.
Sim, confesso, perante Deus e o demônio rabudo, que levei tempo para meter
as fuças no seu dizedor incomum. Hoje, não careço mais de explicações.
Sento-me, paciente, e me entrego ao rio que nasce nas Gerais e se encaminha
para a foz do desconhecido. Ler Rosa é, antes de tudo, perigoso para os
agastados.
O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus
mesmo, quando vier, que venha armado!
Vixe, Maria! O sertão, pelo jeito, não é coisa nem pasto para principiante.
Quem tentou imitá-lo, Guimarães, se engasgou, em brevidade, com a própria
gosma ou o capiau tresvariou no perdido ajuizamento literário, “brejão
engolidor”. Ao fim e na foz, um remendo malfeito, pois não se copia o luarado
inimitável. “Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é
muito perigoso…”
Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também — mas Diadorim é a
minha neblina…
— Shifzzz… miau… mi-au…
— Calma, Nabuco. Que a trama aqui é de quem engrossou o lombo no tocar a
vida na sina sertaneja. Seu rastro é de bichano da cidade, no relume da
mansidão. Se houver em seu mundo gatinha neblinada, você, então, deamore
felinamente morrerá. Amar é cheiroso.
Aqui não se tem convívio que instruir. Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o
pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é
muito perigoso…
— Miau… miau… Shifzz… mi… au.
Não precisa de se aboletar apenas no testemunho daqueles que conquistaram
os instantes no tiro e na quicé, Nabuco. Como anunciou Riobaldo: “Olhe: Deus
come escondido, e o diabo sai por toda parte lambendo o prato…”. Em gerais, o
mundo é formoso. “No sertão, até enterro simples é festa.”

&&&

PÚBLICA

Deixa o mundo dar seus giros! Estou de costas guardadas, a poder de minhas
rezas. Ahã. Deamar, deamo… Relembro Diadorim. Minha mulher que não me
ouça. Moço: toda saudade é uma espécie de velhice.
De permeio, bem sei, que: “Como no recesso do mato, ali intrim, toda luz
verdeja”, esboço meu sorriso alumioso, quando, espiritado, fico falando e
refalando, cantando e propagando os seus achados-criações. Se pura
invencione ou artes de um descobridor? Prefiro nisso nem fechar um coberto.
“O senhor deve de ficar prevenido: esse povo diverte por demais com a
baboseira, dum traque de jumento formam tufão de ventania.”
Grato, filho de Cordisburgo, por seu rosear bem treliçado, o cabra mergulha no
mundo, veredeando, que Deus é como um suspiro bom de presença por riba
de tudo. Por entre seu verbo alumiado, “relimpo de tudo”, só se colhe bons e
regrossos haveres. “Ar que dá açôite de movimento…”.
Confiança — o senhor sabe — não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela
rodeia é o quente da pessoa.
Ficarei por aqui. “Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de
rasa importância.” Não é o caso do mestre João Guimarães Rosa, ser tão
grande: veredas. Nunca fui de “sungar segredo”. “Travessia.”

Obs.: trechos em itálico e entre aspas extraídos da obra Grande sertão: veredas, de
Guimarães Rosa (Companhia das Letras).
* Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia de Letras do Brasil (ALB)
e de outras entidades culturais.
[email protected]

Deixe um comentário