CONFIDÊNCIAS A ANGELA GUTIÉRREZ

 

Clauder Arcanjo*

Nas mãos vazias da menina,

plumagem mágica de ignoto pássaro nascia

e no espelho de seus olhos se esvanecia.  

 

Há magia nas palavras da eterna menina. Eterna por não perder sua plumagem de pássaro, a sempre renascer em cada sonho, em cada poema, em cada cristal-estrofe ofertado, em telúricas epifanias do verbo. “A eterna menina /reinará sem fim?”

 

Velhas mangueiras parindo sombras

debaixo delas

pobre menina parindo sonhos.

 

Cada memória tem uma porção de infinitude. Se a prezamos no regaço dos anos, a semente-memória flora, e seus galhos rebrotam, crescem e invadem cada instante presente. “Noites compridas /E, de manhã, a vida.”

 

E minhas mãos se recolheram

num abraço vazio

de esperança.

 

Angela, todos os poetas são credores da esperança. O tempo espalha caixas de Pandora; e os poetas, em magia singular, esperam, de braços vazios, a esperança de lá brotar. Pouco importa, você bem me adverte, se “nenhum anjo do céu desceu /para me avisar /o milagre que aconteceu.” O milagre é viver (quando o escrever acontece).

 

Onde a canção e a razão

   dessa viagem sem fim?

 

Há indagações que nos afligem, mas o melhor é não parar de viajar, de viver, de perscrutar. Na noite longa, uma voz propaga, frente à brisa que vem do mar: “Vistam-se de branco /joguem rosas ao ar/ apaguem as velas.”

 

Senhor que tudo pode,

Pai de Misericórdia,

ensina-me a cerrar os olhos

e a dormir serena

o merecido sono dos injustos.

 

A insônia nos provoca, Angela Gutiérrez. Ela, noite adentro, a nos cobrar o preço da omissão, dos olhares de lado aos que sofrem abandonados nas calçadas, nas ruas. Se dormimos, serenos, somos injustos com aqueles que clamam por nossa ação. “No escuro profundo do nada /Meus olhos hão de enxergar /A luz impossível do tempo /Que o corpo não soube alcançar?”

 

Vi somente

o olhar imenso e redondo

do menino da esquina

sentado na ponta da rua

olhando a vida passar

veloz, brilhante,

inatingível.

 

Fui assim, Angela, veloz, brilhante, inatingível, a correr pelas esquinas de Licânia. Hoje, tal menino de vez em quando me vem, na madrugada insone, a me falar de valores que há tempos olvidei. “Gritei mas meu brado retumbante /não despertou sequer /a paz silenciosa do meu quarto”.

 

E toda noite

passeiam

na cabeça ardente,

febril,

da menina insone.

 

Essa febre, poeta, é o que melhor restou de nossa infância. Quando ela se instala em seu corpo, a Canção da Menina invade a noite, tal qual, Gutiérrez: “Uma tremura leve de brisa do mar.”

 

A cabeça de mármore

definitiva

prosseguirá

incólume

no projeto de ser

talvez

um dia.

 

Todo ato que se insurge contra nossa identidade, que se volta contra a nossa liberdade, é mera litania de seres da escuridão. A cabeça de mármore da nação é inquebrantável, e para aqueles que urram pela noite, saudosos de tempos infaustos: “— Silêncio, exigem os deuses, /que houve, que afobação?”.

 

Obs.: trechos em itálico, e entre aspas, extraídos da obra Canção da Menina, de Angela Gutiérrez (Fortaleza: UFC, Casa de José de Alencar, Programa Editorial, Coleção Alagadiço Novo, 1997).

 

* Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia de Letras do Brasil (ALB) e de outras entidades culturais.

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