Confidências a Akhmátova

Clauder Arcanjo*

Na janela, o álamo murmura:

“Teu rei já não é mais deste mundo”. 

 

Hoje, não quero falar de álamo, não há álamos no meu sertão. Existem espinhos ferinos; os mais cruéis são aqueles, Anna, que despontam no tronco das línguas dos próximos, fingidos, a nos murmurarem palavras de consolo, enquanto, inocentes, somos alvos dos seus ferrões. “E nós, perturbados, amargos mas altivos,/ não ousamos erguer do chão os nossos olhos.” 

 

Esta é a canção do último encontro. 

De novo olhei a casa sombria.

No quarto apenas, brilhavam velas 

com um fogo amarelado e indiferente. 

 

Cada morada de infância, na memória, tem um fogo amarelado e constante, chama de vela infinda, a retornar nossos mortos em canções de gestas, hinos de dor e lamento. “Não, não foi sob um céu estrangeiro,/ nem ao abrigo de asas estrangeiras –/ eu estava bem no meio de meu povo,/ lá onde o meu povo infelizmente estava.” 

 

Vivo como o cuco no relógio 

não invejo os pássaros no bosque. 

Esta missão me foi dada e eu canto. 

Sabe, destino semelhante, 

só a um inimigo poderia desejá-lo. 

 

Akhmátova, o povo russo, como toda nação, expressa melhor seu destino na pena de seus vates. Quando os poderosos os degredam, no exílio o estro mais se apura, e o poema, pássaro sem fronteiras, se torna porta-voz do mundo. “Mas, no quarto do poeta degredado,/ o Medo e a Musa velam em rodízio,/ e uma noite cai/ que não traz esperança de alvorada.” 

 

A orquestra toca uma música bem alegre 

e os meus lábios formam um sorriso. 

 

Que música pode ser mais consequente do que as palavras por ti geradas, flor de sal e candura, na noite mais fria a todos ofertada? Toda poesia é uma música singular de pranto. “Quem há de chorar por essa mulher?/ Não é insignificante demais para que a lamentem?/ E, no entanto, meu coração nunca esquecera/ quem deu a própria vida por um único olhar.” 

 

Aprendi a viver com simplicidade, com juízo, 

a olhar o céu, a fazer minhas orações, 

a passear sozinha até a noite, 

até ter esgotado esta agonia inútil. 

 

Os mais simples reinarão na eternidade da Poesia, terra prometida. Os exilados se reconfortam ao escreverem, com pena e sangue, as orações agônicas que os sublimam. “Para mim, o exilado é digno de dó,/ como quem está preso ou está doente./ Sombria é a tua estrada, peregrino,/ vermes infestam o teu pão estrangeiro.” 

 

***

 

Mas que poder tem esse homem 

que nem sequer me pede ternura… 

Mal posso erguer as pálpebras cansadas 

quando ele pronuncia o meu nome. 

 

Quem pronuncia o teu nome, poetisa, de olhos cerrados, se autoproclama senhor de um tesouro, semeadura de letras e mitos; quanto mais valioso, quanto mais calcinado. “É como se afastasses minha alma peregrina/ tanto do inferno quanto do céu.” 

 

A verdadeira ternura não se confunde 

com coisa alguma. É silenciosa. 

 

Corro céus e terra e me confundo entre tantas léguas; quando não se sabe o que se busca, todo caminho é um desterro prenunciado. “Algum desocupado inventou/ essa história de que há amor no mundo.” E o amor me obriga a continuar caminhando silencioso, sonhando, mesmo que, Akhmátova, o colhido seja a messe do Nada. 

 

Como conheço bem esses insistentes 

e insatisfeitos olhares teus. 

 

Teus olhares na página, teus versos na noite. E eu, cativo, revisito cada estrofe tua, Anna Akhmátova, e tua poética nada decifra. E, por isso, mais me encanta. “Dentro de cada ser há um segredo/ a que nem a paixão consegue acesso”. 

 

Diante de meus olhos, que eram cegos, 

ressurge concreto um mundo inteligível e familiar. 

O Deus dos Céus cicatrizou minha alma 

com a gélida calma da ausência do amor. 

 

No dia a dia, a alma se insurge, insatisfeita com o instante incolor, com o pensar insosso, com o futuro sem rumo. “E a Musa, com o vestido rasgado,/ canta uma triste canção:/ é em sua angústia, rija, jovem,/ que está sua incrível força.” Bato a poeira da sola do tempo e invado o amanhã. No alto, cegos pássaros ecoam esgares infernais. 

 

Mais do que todos os esquecidos aprendi a esquecer. 

Serenamente fluem os anos. 

Esses lábios inviolados, esses olhos sem sorriso, 

não os encontrarei nunca mais. 

 

O esquecimento no ouvido, no tato, no paladar. O olvido na voz, no silêncio do quarto frio, no retrato que te traz e me viola. “E o corpo espanta-se ao sentir-se leve/ e já não reconhece a própria casa”. 

 

Já é hora de alçar voo sobre os campos e os rios, 

pois nem consegues cantar 

e tua mão nem tem forças 

para enxugar tuas próprias lágrimas. 

 

Obs.: trechos em itálico, e entre aspas, extraídos da obra Antologia poética, de Anna Akhmátova; seleção, tradução, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho (Porto Alegre, RS: L&PM, 2014). 

 

* Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia de Letras do Brasil (ALB) e de outras entidades culturais.

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