COMPANHEIRO ACÁCIO E NELSON RODRIGUES

Clauder Arcanjo

 

Cheguei mais cedo e, quando abri a porta, escutei a voz do Companheiro Acácio:

— Não pense que sou um idiota da objetividade, Nelson. Mas, creia-me, tenho meus pudores intelectuais, assim como uma severa aversão aos idiotas de carteirinha.

Fiquei pasmo com o que testemunhei: Companheiro Acácio à mesa com Nelson Rodrigues! “Caio das nuvens, o que, segundo Machado de Assis, é melhor do que cair de um terceiro andar.”

Calma, não estou louco. Explicarei. Meu amigo estava à mesa com a obra completa de Nelson Rodrigues e, com ele, mantinha um singular diálogo.

Quando quis interrompê-los, Acácio sinalizou para mim, pedindo que eu me sentasse na poltrona no fundo, enquanto o debate ganhava foros de luta livre.

— Sim, você me diz: “Hoje, ninguém respeita a inteligência, nem a inteligência se respeita a si mesma.” Porém, Nelson, na minha infância, assim como na sua, o intelectual tinha o seu espaço.

Acácio, como se num palco improvisado, mantinha um “monólogo” consigo mesmo, trocando os papéis. Ora, apropriando-se da “voz” de Nelson; ora, a dele próprio.

— “Ah, sou um homem suscetível de violentas nostalgias. Gosto de falar da…”

Acácio, como se a alterar sua personagem, mudou de posição e completou a declaração rodrigueana:

— “…vacina obrigatória, do naufrágio da Barca Sétima e do assassinato de Pinheiro Machado.”

De início, confesso, estranhei tal ato, contudo, com pouco mais, passei a “curtir” (como dizem os jovens) com aquele teatro incomum.

— Tenho fixação pelo seu estilo. Adoro reler “Flor de obsessão”. Em especial, o trecho: “Sou um obsessivo. E, aliás, que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatro ideias fixas? Repito: — não há santo, herói, gênio ou pulha sem ideias fixas. Só os imbecis não as têm.”

Acácio, agora com a dicção a imitar a de Nelson, declarou:

— “Quando vou julgar um brasileiro, trato de saber, preliminarmente, se ele chora. É vital chorar. E o Otto chora.”

Senti como se aqueles dois trouxessem mais um para a boca da cena. No caso, Otto Lara Resende.

— “Fecho o parêntese e passo ao meu amigo Otto Lara Resende. Ou por outra: — não é a hora de entrar o meu amigo Otto Lara Resende. Primeiro, gostaria de dizer duas palavras sobre o intelectual subdesenvolvido. O que o caracteriza, acima de tudo, é o pânico de parecer imbecil.”

Como se aquilo me transpusesse para a prosa rodrigueana, emendei:

— Acácio e Nelson, uma sentença ainda hoje me persegue: “O povo desconfia do que entende, desconfia do que gosta.”

Percebi, sobre mim, os olhos selvagens de Acácio; e a voz rascante do Anjo Pornográfico:

— “Eis o que importa: — ser ouvido. (Na vida real ninguém nos ouve; somos surdos uns para os outros.)”

A cortina do silêncio caiu sobre nós, e eu pensei, cá com minha sacrossanta ignorância: “A utopia de cada qual é encontrar um ouvinte.”

E, logo em seguida, Companheiro Acácio arrematou, já de volta ao seu papel principal de alter ego meu, óbvio e ululante:

— Estou com fome. A peça acabou, o pudor está de volta. “E certos pundonores, certos brios, exigem um salário e as três refeições. Aprendi mais: a fome não odeia, nem ama. Se me aparecesse a Ava Gardner, de Salomé, eu continuaria inamovível. Durante esses cinco anos, não namorei. Fui incapaz de um sentimento forte. A fome esvaziou-me; e eu me sentia oco, sem entranhas, como um autopsiado.”

Caí em profundo êxtase, tal qual um Sobrenatural de Almeida em um vazio pleno de reflexões. Ao canto, Acácio e Nelson em conluio: “Eu diria que o silêncio iníquo é também a glória.”

E, rodrigueanamente, acrescentei: “Gênio, santo ou profeta é aquele que enxerga o óbvio.”

 

Fonte: os trechos entre aspas foram extraídos do livro O melhor de Nelson Rodrigues: teatro, contos e crônicas (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018).

Deixe um comentário