Claudio Arcanjo – PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CLXXIX)

 

Meu silêncio de cinco faces

 

 

Para Ruy Espinheira Filho

 

A amargura trava as minhas mãos; mas, com pouco, se aquieta no canto do peito e mergulha em um silêncio de cauta timidez. Ao acordar, sopra-me confidências travosas (apesar de verdadeiras) aos ouvidos inocentes.

Rebelo-me com tais silogismos acres. A voz de Emil Cioran: “Magia do artista irrealizado…, de um vencido que desperdiça suas decepções, que não sabe fazê-las frutificar.” Todavia, refeito, bem sei o favor que eles me fazem: desvelam o manto de hipocrisia que recobria o meu “cândido” olhar.

 

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Acordei drummondiano: senti a presença de alguma poesia no brejo das almas, sem mencionar a presença, qual um congresso internacional do medo, de uma pedra no meio do caminho do meu alvorecer. Após o café, reuni forças para encarar a máquina do mundo: “baixei os olhos, incurioso, lasso /desdenhando colher a coisa oferta /que se abria gratuita a meu engenho”. Fazendeiro do ar.

Antes de sair para a rua — “Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração” —, o quadro de Licânia, claro enigma, na parede me doía n’alma: a rosa do povo.

Licânia, Licânia, se eu fosse casado com Edivânia seria uma rima, não seria uma solução. E agora, José? José, para onde?

Licânia, Licânia, meu vasto mundo. Seria mais vasto o meu coração?

Nesta minha vida de quatro faces, lição de coisas, Licânia seria o áporo do meu corpo de madureza? Boitempo em boca de luar.

 

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No princípio da tarde, Bandeira sentou-se comigo — encontrou “lavrado o campo, a casa limpa, /A mesa posta, / Com cada coisa em seu lugar.” Pôs a relembrar-se da infância, “Evocação do Recife”. Recife antigo: “Rua da União… /Como eram lindos os montes das ruas da minha infância /Rua do Sol /(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal) /Atrás de casa ficava a Rua da Saudade… /…onde se ia fumar escondido /Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora… /…onde se ia pescar escondido”. A cidade a dormir profundamente, n’o ritmo dissoluto.

De repente ele me convidou para ir com ele a Pasárgada, a revelar-me que lá era amigo do rei. Estrela da vida inteira no itinerário de Pasárgada.

Desculpei-me, alegando compromisso, n’a cinza das horas, com as três mulheres do sabonete Araxá. “O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!”

Bandeira piscou um olho para Irene, libertinagem, fingindo em mim acreditar. “— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”

Manuel Bandeira bom, andorinha, andorinha! “Não há mais poesia. /Mas há artes poéticas…” Belo, belo! Bandeira é poeta federal, Drummond! Lira dos cinquent’anos no mafuá do malungo.

Sempre ele, o Bandeira do Brasil.

 

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Antes de dormir, ouvi quintanares no jardim. Ao abrir a janela da frente, um baú de espantos: a noite estava grávida de estrelas. O aprendiz de feiticeiro?

Ao sentir a placidez da brisa, eis que a vaca e o hipogrifo declamaram canções frente ao espelho mágico. Uma delas dizia: “Tu passarás, Quintana eterno passarinho”.

Neste instante uma estrela cadente reluziu nos céus de agosto; era Mario Quintana, travesso de Alegrete, sapato florido, a cavalgar, com nariz de vidro, a eternidade montado no Pégaso da Poesia.

“Salve Quintana! O céu sempre foi, e será, teu! Está escrito nos astros do Caderno H!”

 

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A Poesia, ao sentir o meu coito imaterial com a Amargura, ofereceu-me o Leito de Procusto. Cortou-me um estribilho longo e torto, esticou-me um infenso haicai, e eu dormi na cama que me cabia. Em meio à intensa entrega-sacrifício, suspeito que os poetastros rezavam pelo meu suicídio. “A paixão dos suicidas que se matam sem explicação”, como versejou Manuel Bandeira.

Ao me levantar, de olhos quedos e indecifráveis, os pobres coitados, sapos do brejo, ao invés de velarem a sua arte, lamentavam a minha ressurreição poética.

Poesia: a vida em oferenda, completa sagração. Versos a se insurgirem antes que se apague a última luz da vida.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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