Clauder Arcanjo

A Mulher Papel

 

Clauder Arcanjo

 

— Sim, mas ela lhe deixou alguma coisa escrita?!

Depois de lhe relatar todo o seu infortúnio com Florípedes, o padre Araquento, que o ouvira com tamanha parcimônia, interrompera-o com aquela indagação.

— Por que, seu padre?

— Filho de Cristo!… Responda-me: ela lhe deixou algo por escrito? Uma carta, um bilhete, algo assim?

— Bom…

— Não se trata de bom, nem de tão bom. Repito: deixou ou não deixou?

— E que importância isto tem para o meu caso, senhor vigário?

— Se você não encontrou, ou nem procurou, seu Gaudêncio, o caso é de voltar lá e revirar tudo. Como se procura agulha no palheiro. Me ouviu, bem?

E o foi benzendo, sem esperar por mais nenhum pecado seu.

— Pode chamar o próximo, sacristão!

Era uma tarde quente, e o confessionário estava com uma fila enorme lá fora. Seu Gaudêncio deixou a igreja Matriz, e meteu-se pelas ruas de Licânia. A cabeça, que procurava um consolo nas palavras do representante de Deus aqui na Terra, saíra mais perdida, como se um novelo de indagações evitasse que ele recuperasse o rumo.

— Por escrito. Ora, só me faltava essa!

No entanto, criado e educado sobre os mandamentos de Deus, ou por nada mais ter que fazer, Gaudêncio resolveu acatar o conselho do velho pároco, seguindo para casa.

 

***

 

— Saiu? Você viu ela sair, comadre Sílvia?

Gaudêncio voltara do trabalho e encontrara a casa vazia. Com pouco, batia às portas da vizinhança, a fim de saber notícia de sua Florípedes.

— Gonçala!? Ô, dona Gonçala, você viu ela saindo?

Quanto mais perguntava, Gaudêncio só colhia silêncio e inquietação.

Tudo aquilo se dera há exatas duas semanas.

Conhecera Florípedes numa quermesse e logo gostara daqueles olhos agateados. A cintura fina e seu jeitinho travesso cativaram o quarentão Gaudêncio. Foi amor ligeiro e arrochado. Menos de mês, eles estavam juntos. De casa montada, no Alto da Liberdade. Construção nova, de dois quartos, alpendrada, de frente para o nascente. Gaudêncio, apaixonado, fizera todos os gostos da companheira: móveis, artigos de mesa, cama e cozinha, sem mencionar a decoração.

E agora, ele não podia entender, aquele sumiço. Na madrugada anterior, amaram-se com vigor e paixão. “Minha gatinha!”; “Meu gatão!”

 

***

 

Gaudêncio, de volta. As vizinhas a lhe observarem pelos postigos das janelas. Curiosas com o desenrolar daquele drama.

Gaudêncio entrou e revirou tudo. Sala, varanda, quartos, cozinha, até embaixo dos jarros e das pedras decorativas do quintal. Nada. Nenhum escrito de Florípedes.

Resolveu descansar, deitando-se na rede de varanda, armada no terraço junto ao quintal. A lembrança do colo e dos beijos de Florípedes banhou-lhe a face com lágrimas. Saudade e dor.

— Ô minha Florípedes! Cadê você?

Não sabe como, cochilou. No sonho, a voz forte do padre Araquento: “Responda-me: ela lhe deixou algo por escrito? Uma carta, um bilhete, algo assim?”

Altas horas, ele acordou, mas a casa dormia. Melhor, a cidade dormia.

Gaudêncio levantou-se e caminhou, no escuro, em direção ao quarto de casal. Lá, deitou-se, levando a mão esquerda para o lado da companheira. Com pouco, ao abraçar-se com o travesseiro dela, Gaudêncio sentiu algo por entre a fronha.

Tateou e sentiu um papel preso na parte interna da fronha. Sem abrir os olhos, dobrou-o, guardando-o, em seguida, no fundo do bolso da calça. Dali em diante, a voz do velho pároco: “… ela lhe deixou algo por escrito? Uma carta, um bilhete, algo assim?”

Manhã cedo, com a cara preocupada e maldormida, Gaudêncio seguiu para a casa paroquial.

Entrou, sem bater. Padre Araquento tomava seu café. Gaudêncio em pé, parado; com a mão no bolso da calça, trêmulo.

— Alguma coisa escrita?

— Sim. Não tive coragem de ler, seu padre!

— Dê-me cá, filho de Deus. Sente-se aqui. Tenha calma, Deus é grande, e maiores ainda são os Seus mistérios.

Gaudêncio retirou o papel dobrado do fundo do bolso, com a mão nervosa, como se indecisa, insegura. Num esforço sobre-humano.

O reverendo apanhou aquele pequeno papel; abrindo-o lentamente, enquanto ajustava os óculos.

Padre Araquento leu o escrito, em profundo silêncio. Pelo canto dos olhos, observava o sofrimento na face de Gaudêncio. À mente do clérigo de Licânia, acorreram, numa velocidade descomunal, as visitas ao seu confessionário dos últimos amantes de Florípedes. “Florípedes, a mulher papel”.

Com vagar, dobrou o bilhete e levantou-se, dando as costas para aquele filho de Deus. Hauriu, então, o ar fresco da manhã.

— Bom?…

— Não se trata de bom, nem de tão bom, meu filho. Só os desígnios de Cristo é que estavam escritos.

E, voltando-se, Padre Araquento abraçou-o:

— Gaudêncio!… Em verdade, em verdade, a vida vale mais do que uma carta, um bilhete, ou algo assim.

 

Clauder Arcanjo

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