Clauder Arcanjo: Vigésimo terceiro conto de separação

Seu sorriso me era desnecessário. Sim, em meio a tanta desgraça, sorrir era-me sinal de troça; para mim, de funda zombaria.

Desceu do alto do degrau que havia na calçada, e disparou, em minha direção. Eu, sentada numa pedra, de frente para a casa.

— É a vida, minha cara. Com tudo que ela nos dá: um bocadinho de alegria, um punhado de esperança e uma arroba de desgraças. Quase todo dia, não sabia?

Nem ele, nem ninguém riu. Como se esperássemos uma autorização para tal. Passado algum tempo, a bocarra dele se abriu e despejou, numa espécie de urro, uma gaitada gutural, como se parida das entranhas daquele patético homenzarrão.

Cabreira, esbocei um risinho, mais fiapo de espanto do que de contentamento.

Catei um graveto na terra quente, e risquei o chão seco. Por entre as garatujas, a minha cabeça vagou solta. Lembrança da infância perdida nas lonjuras do sertão, a decisão de deixar a casa dos meus pais, depois da perseguição do filho do Coronel Salustiano, dono das terras, toda vez que eu descia, em direção à Lagoa das Bestas, para o meu banho no final da tarde. Sabia que meu pai fora um antigo cangaceiro, e aquilo ia se lavar de sangue.

Uma sombra cobriu meus dedos magros. Parei e elevei meus olhos, era ele. Com seu corpanzil protegido pelo gibão de couro; na mão direita, o seu chicote de couro cru, trançado com esmero.

— Você não respondeu; ou estou enganado?

No sertão, aprendi desde cedo, se fala pouco e se repara muito. No silêncio, a verdade aflora e brota forte, tal qual a mataria depois da primeira chuva.

Cocei a cara, para ganhar tempo e revelar o meu desfastio por tudo. Ele cobriu meus desenhos com a terra próxima, levada pelo chinelão de rabicho dos pés calejados.

Levantei-me, dando-lhe as costas.

Senti que havia passado do limite seguro, desde que me juntara ao seu bando há mais de ano. De início, logo percebi, ele resistira a me deixar juntar à sua jagunçada. A madrinha dele, Dona Lourdinha do Rosário, mais lhe ordenara do que pedira. “Leve a moça, vai lhe ser útil. Muitos dos seus homens são mais frouxos de que…” E não fechou o pensamento, empurrando-me, pelo ombro, para perto dele. Na casa dela, mais como filha do que como empregada, ficara quase nove meses. Ela, mulher inteligente, logo percebera que eu não era de forno e fogão. Minhas mãos firmes gostavam mais da luta do gado; e Dona Lourdinha se espantara com a minha força e brabeza, quando o assunto fora a fera dos animais ou o abate dos bichos da roça.

— Mulher, no meu bando?!… — reclamou, em tom de burro brabo.

— É a vida, Simplício dos Santos! Ela revela segredos, meu afilhado, e Deus sempre nos cobre de graças.

***

— Você não respondeu; e ainda me dá as costas, sua cabrita!?…

“Cabrita…”; a lembrança viva do filho do Coronel Salustiano invadiu-me os bofes. Levei a mão direita ao cós da calça, puxando a peixeira que ganhara de Dona Lourdinha. Ao me virar, cravei-a no peito de Simplício; que, em seguida, arregalou os olhos grandes, gritando, urro dos bofes pestilentos daquele desgraçado. Percebi muito bem, no seu olhar, no instante final, a mistura do espanto com a zombaria. Safado!

Os seus cabras, aturdidos com a queda daquele homenzarrão na terra seca, não se mexeram.

Então, eu subi no cavalo do cangaceiro chefe, tomando o rumo do sertão de dentro a chicoteá-lo. Só parei quando faltaram forças nas patas do alazão.

***

E, hoje, aqui, nesta loca de pedra no alto do Serrote da Rola, depois de me separar do meu próprio bando, antes do assalto à Fazenda Eldorado, estou a riscar o chão de terra batida, refazendo as garatujas com o desenho da minha lida; onde, cada vez mais, o sorriso se torna desnecessário.

— É a vida, minha cara. Com tudo que ela nos dá: um bocadinho de alegria, um punhado de esperança e uma arroba de desgraças. Quase todo dia, não sabia?

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]