Clauder Arcanjo – Vigésimo quarto conto de separação

Nunca se esqueceria do seu sorriso trigueiro. Os outros nunca substituiriam, por completo, aquela relação forte e, diria até, carnal. Parece que ela se entendia com ele, mesmo à distância. Mal entrava no portão, parece que ele dava por sua aproximação, antes até da sua presença física.

Certa noite, lembrava-se dela muito bem, atrasara-se no trabalho. Foi um deus nos acuda. Sua mãe, desesperada, lhe aguardava na varanda, num ir e vir de angústia e sofrimento. “Não suportava mais tanto sofrimento, minha filha! Ele não quis comer nada, está numa tristeza só. Vem ao portão, e volta. Os olhos baixos e soturnos, parece que a melancolia tomou conta do seu corpo. Nunca vi isso antes, cruz credo!”

Entrou e abraçou-se com ele. Fez-lhe carinho, mexendo com sua cabeça, coçando a parte de trás de suas orelhas, pois sabia estar aí o seu ponto fraco. Hora depois, na cama, tudo caiu no fundo esquecimento. E dormiram juntos, como se dois anjos.

***

Numa certa tarde, a vizinha falara à sua mãe acerca da doença de uma prima distante. Caso grave, fazendo-se necessária a internação para uma intervenção cirúrgica de urgência. Como era viúva, não havia ninguém para ficar com o seu companheiro.

— Ele poderia ficar uns dias com vocês. É caso de caridade, Deus está vendo e as cobrirá de graças e bênçãos.

O rogo esticando a corda da caridade, e pondo Deus num dos extremos da corda, fizera-as capitular. Seria coisa de alguns dias; no máximo, acreditavam, de uma a duas semanas.

A entrada daquele hóspede trouxe uma luz nova à velha casa assobradada. As brincadeiras corriam pela sala, pelos corredores e pelas dependências de dormir, sem mencionar o terreno aos fundos; mãe e filha ganharam, a partir daí, foros de uma nova mocidade. Sem falar que o Francisco, acreditem, não teve ciúmes do Adamastor, era este o nome do companheiro da enferma. Ao contrário, formaram uma dupla de amizade canina. Na pura acepção da palavra.

— Vivem como dois irmãos, mamãe — comentava Nathália, contente com a convivência dos dois.

Mãe e filha redobravam-lhes os cuidados. Nada lhes faltava: companheirismo, cuidados pessoais, alimentação e conversa ao cair da noite.

— Não se esqueçam de dormirem cedo. Nada de flanarem pela casa a noite toda. O sono é bom e traz saúde, ouviram-me? — admoestava-os Dona Goretti, antes de se recolher para o merecido descanso, e depois de abençoar a filha Nathália.

Comentam que, mal Dona Goretti entrava no seu quarto e trancava a porta, eles cuidavam de esgueirar-se para a alcova da jovem Nathália e, lá, conversarem longas horas. Em algumas noites, comentam, dormiram nas cadeiras, junto ao leito da amiga e confidente.

***

— Dona Goretti?! Nathália?! Ô de casa!

Era a vizinha. Dois meses haviam se passado.

— A coisa se esticou; quase que minha prima foi mais cedo ajustar as contas com os céus! Abracei-me, então, com São Francisco de Assis, e ele obrou mais um milagre. A prima está curada e, graças a Deus, de volta ao seu lar.

— Deus é grande! — comentou, sem dar-se conta do que tal milagre geraria, Dona Goretti.

— Vim pegar o Adamastor. Ao recobrar a saúde, a prima só fala nesse cachorro. Espero que ele não tenha lhes dado muito trabalho; não é, Adamastor?

Quando a vizinha lhe abriu os braços magros, Adamastor baixou os olhos capiongos e ganiu de dor. Sim, de dor. O que foi aparteado pelo soluço da mãe e da filha. E pelo latido melancólico de Francisco. Os dois cães correram para o fundo da casa, escondendo-se da vista da vizinha.

— Venha cá, Adamastor. Sua mãezinha o aguarda. Venha, bichinho!

Dona Goretti e Nathália não se mexeram, enfiaram-se numa tristeza sem par, e decidiram não mover uma palha para a saída de Adamastor. Francisco, serelepe e ativo, montara guarda à frente do esconderijo e, quando a vizinha metera a mão por baixo da velha poltrona, foi recebida a mordidas e por latidos coléricos.

— Seu cachorro desgraçado! — disparou.

— Desgraçado, não! — devolveram as duas, mãe e filha. Cuidando, Nathália, de tangê-la, tal qual uma loba, para fora de casa.

— O que vocês estão fazendo? Adamastor é cachorro de estimação da prima, vocês não podem ficar com ele. Prima não suportaria essa separação.

Não lhe deram mais ouvidos. Dona Goretti e Nathália bateram-lhe o portão da frente; em seguida, trancaram-se dentro do velho sobrado, colocando tramelas em todas as portas e janelas.

Dizem que, na madrugada chuvosa, as duas saíram pela porta dos fundos, para nunca mais serem vistas em Licânia. Nos alforjes, tão só os dois bichos de estimação: Francisco e Adamastor.

E quanto à prima da tal vizinha?! Comentam, à boca miúda, que ainda não superou a falta do “companheiro”, nunca se esquecera do sorriso trigueiro do seu pinsher. Ouvem-se seus uivos de saudade, mal a noite se anuncia nas ribeiras de Licânia.

Clauder Arcanjo

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