Clauder Arcanjo PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CLXXXII)

(Pintura Os dançarinos, de Fernando Botero)

 

Diário de Lamentos

 

Para o escritor Menalton Braff

 

Perdi a sua voz quando mergulhei no meu silêncio egoísta.

Hoje sei que poderia ter ouvido você enquanto silenciava, bastava ter aberto o tímpano do meu peito.

Em verdade, querida, escuta-se melhor a fala da paixão com as orelhas do coração.

 

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— Retornaremos ao normal, querida?

— Quando foi que tivemos um relacionamento normal? Diga-me, porque não lembro.

— Então não me ama?

— Amo de uma forma profundamente normal.

 

Com aquela resposta, de olhos úmidos, ele se afastou.

Antes de sair, fez uma graça na cabeça do bichano. Este, normalmente carinhoso, devolveu o seu gesto com uma mordida afiada. Nada mais lhe seria normal.

 

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Tentava orquestrar seus lamentos todo final do dia, mas a harmonia lhe fugia.

Naquele entardecer, ele tentou novamente, seguidas vezes.

Ao final, extenuado, entregou-se ao sono. Na madrugada, sob os eflúvios de uma orquestra zombeteira e lamentosa, dançou sozinho.

No dia seguinte o bem-te-vi ensinou-lhe, com seu rotineiro cantar, que a vida seguia em frente, apesar das suas desarmônicas rabugices.

 

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Ordenaram-me que seguisse adiante, revolucionando-me em cada esquina, redesenhando meus gestos a cada passo, reinventando-me dia após dia.

Quando dei por mim, meses depois, eu era uma massa totalmente informe. Sem nenhuma marca própria, ausente de mim.

 

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Ajudou-me a me ajudar. Ela se achegava de mansinho, sentava-se ao meu lado, e emprestava sua atenção às minhas desatenções.

Minutos depois, silente, eu percebia que a sua principal lição era me ensinar a me encontrar comigo. Era um viúvo do meu eu.

 

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No início da manhã abri o livro As pequenas virtudes, de Natalia Ginzburg. Lá, a sua palavra de ofício: “Nas coisas que escrevemos afloram então contínuas lembranças do nosso passado, nossa própria voz ressoa continuamente, e não conseguimos impor-lhe o silêncio.”

Licânia nunca se calou na minha pena. Sua voz desvela o melhor de mim.

 

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— Vamos dançar agora, querida?

— Para quê, meu bem? O mundo anda tão triste. Não seria nossa dança uma leviandade?

— Leviandade?! Sinceramente, não. Levianos seríamos se morrêssemos parados, e separados, diante de tanta consumição.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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