Clauder Arcanjo: PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CLXXX)

(Pintura Guarda-chuva, de Cícero Dias)

 

Hidroavião na província

 

Para o poeta Alberto Bresciani

 

O hidroavião amerissou dentro da minha memória.

 

Você tece uma corrente

de desejos e a deixa

ao longo do corredor,

esperando encontrar

qualquer caminho

capaz de apagar

escolhas, erros, vazio.

Alberto Bresciani, em Hidroavião (São Paulo: Editora Patuá, 2020).

 

E eu cismei, a imaginá-lo, “Estrangeiro” taxiando na ribeira de Licânia. Lá o que impera, nas correntes invernosas e turvas, são os canoeiros, com seus búzios de chamado pungente. Mas, quem sabe, o combustível da licença poética não fizesse de uma de nossas naus provincianas um pássaro lírico, de metal e luz?

O hidroavião deixou saudade provinciana em mim; ao subir e sumir no horizonte largo e azul do meu Acaraú, rio das garças.

 

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Há um quê de indecifrável no verso natural, na metáfora simples e discreta, na rima cândida e lúdica a pousarem no poema inesperado.

Poeta, não reaja a tão notáveis presenças! Aceite-as, como a noite concede a invasão do orvalho para batizar sua face em desespero.

 

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Noto em mim, apesar do meu intenso repúdio, a presunção de uma estrofe metafísica suspensa na boca dos meus dias.

Insisto e sempre lhe peço: “Durma, entregue-se ao sono profundo, tal qual o daqueles que jazem no túmulo do descanso infindo.”

Oro para que cada verso meu se cubra com a bênção do meu povo — rico na singeleza dos seus ditos —, para só então emergir na língua limpa dos meus escritos.

 

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Ontem foi um dia apadrinhado pela Melancolia. Esta senhora sentou-se à minha mesa, tomou do meu café, serviu-me um caldo de reminiscências doridas (eu as imaginava esquecidas!) no prato fundo da rotina, posto ao centro da mesa. De forma inesperada, apontou-me o dedo indicador, seco de tanta crítica pessoal.

Ontem, ao cair da noite, só consegui me recolher, e dormir, quando expulsei de casa, pela porta dos fundos, tão caturra dama. “Vá, suma e veja se me esquece!”

 

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A concepção e parto de uma página (poema, conto, memórias…) cobram do escritor a entrega final de um suicida.

Todo escrito é, enfim, um caso de vida e morte. Ave, verbo!

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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