Clauder Arcanjo: PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CLXXIII)
(Nua sentada em um divã, de Modigliani)
Toda vez que releio Memórias do subsolo, de Dostoiévski, sinto em mim a presença do homem do subsolo. Na minha ranzinzice, na negação aos lugares-comuns, no meu mau humor, na mania de me fechar no canto e não me deixar levar pelos ferrenhos racionalistas.
Em essência, todo escritor é homem afeito ao subsolo. De lá se vê melhor as idiotices veneradas pelos festejados vencedores.
&&&
Acordei nublado, depois de sonhar ensolarado.
Pouco depois, passei a prever chuvas e trovoadas no terreno das certezas minhas.
Mais tarde, quem sabe, navegarei no rio do espanto, sem barco, sem bússola, nem acalanto.
&&&
Ela lhe havia prometido o céu, mas ele não desconfiava de que o seu firmamento era prenhe de raios e nuvens pesadas.
Depois de anos de convívio, ele concluiu:
— Quem namora a ilusão se casa com as tormentas.
&&&
Muitos se fazem cristãos por tradição, não por crença nos valores de Cristo.
Se atentassem para a palavra do Messias, muitos “fervorosos e pios homens” saberiam que o Inferno já os julgava residentes com vaga cativa.
&&&
Não fale em soneto em casa de quem maltrata o poema de noite e de dia.
O verso livre (tão ou mais difícil de ser urdido quanto as formas fixas) infestou a poética de parvos, ignóbeis e medíocres.
&&&
Se chegava cedo, Esmeralda julgava-o de consciência pesada:
— Andou armando, seu desgraçado?!
Domício relevava tudo. O amor tinha seus zelos, professava à vizinhança.
Certa noite, após varar a madrugada num batente extra, Domício a caminho de casa, ia a preparar o lombo para as varadas.
Ao abrir a porta do quarto, sem bater, ele flagrou o vizinho “consolando” a sua Esmeralda:
— A coitadinha chorava tal qual uma bezerrinha desmamada!
Ele coçou os bagos e inquiriu-o:
— E quem mama é você, seu condenado?
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.