Clauder Arcanjo Pílulas para o Silêncio (Parte CLVIII)

(Foto “Folhas breves”, de Otávio Menezes)

 

Somos folhas breves ondem dormem

aves de sombra e solidão.

(As mãos e os frutos, de Eugénio de Andrade)

 

Caminho na manhã larga e me encontro com a solidão pendurada nos varais das casas vazias. Os homens não acordaram ainda para o suplício cotidiano, ração diária de azáfama e vazio.

Ao me encontrar na praça ampliada pelo silêncio do passaredo, eis que flagro uma folha recém-caída. Ela jazia brilhosa e colorida sobre o chão sujo de calma e sombra.

Colho-a com as mãos postas e ofereço-a ao céu limpo, de um azul de doer nas pupilas borradas.

 

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Ontem choveu, quase não percebi. Para mim, filho do sertão de Licânia, só há inverno quando se sente o mormaço invadir as narinas caboclas.

O bafo do asfalto não me lembra do telúrico chuvisco.

 

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— Alguém me leva a Licânia? — Clamei em sonho.

— Acalma-te! Licânia não existe. É apenas uma invenção de teu pai e fruto de tua meninice. Cuida de dormir! Mas de dormir pro-fun-da-men-te… — soprou-me um espectro aos meus ouvidos.

— Eu não quero saber! Licânia é mais viva (e presente) de que muitas cidades festejadas. Ela está no centro do mapa da minha memória, vizinha de outras comunidades também muito bem sonhadas (e desejadas). Quem faz uma cidade é o desejo! Fui claro?! — ameacei-o, com o punhal da lembrança em punho.

— Cidade… memória… desejo… — A voz sonâmbula falhava, enquanto revolvia-me naquele longo pesadelo.

Ao despertar, o retrato de meu pai, posto na cabeceira, sorria-me teluricamente.

— A sua bênção, meu pai.

 

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Entre os espinhos do sertão, sempre esperamos o brotar da flor mais teimosa.

 

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Noite passada só consegui dormir após me entregar ao remanso do rio da minha terra. Vi-me dentro de uma canoa grande, sem bússola nem timão; descíamos na enchente espumosa, e o soprar do búzio pelo canoeiro me trouxe de volta o sono (e os sonhos) de infante.

 

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Se um dia eu perder a memória de minha gente, se uma noite eu me esquecer do bulício do passaredo de meu chão, se sumirem da minha prosa os tipos e valores do povo de Licânia… suspeito que muito (ou seria o melhor?) de mim já haverá se despedido para o Além.

A pior das mortes é o passamento da memória. Mundo de sombra e solidão.

Clauder
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.