Clauder Arcanjo – PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLIX)

                                                                                                                                                     Clauder Arcanjo

 

 

 

 

 

 

(Quadro “Mata virgem”, de Johann Moritz Rugendas)

Lugares

 

“Os lugares são como os livros: só existem quando os lemos pela segunda vez.”

(Mia Couto, em O mapeador de ausências).

 

Um romance sobre a mesa e, bem perto, a xícara de café a me espiar. Entre um capítulo e outro, penso no meu drama. No entanto, o teatro da vida nem se lembra dos belos recantos que visitei.

De repente, caminho para o epílogo; e, desconfio, o café abandonado já antevira, pela segunda vez, esse previsível fim.

 

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Na barranca do rio, as raízes da velha árvore se apresentam como as partes íntimas de uma dama desprovida de suas vestes.

Nas águas que correm, pouco abaixo, pressinto a memória da província a escorrer entre o limo; este, em seguida, tenta fixar-se nos vórtices do redemoinho.

 

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Se saíres de tua terra na ilusão de fugir do teu mundo, saibas que ela foi tatuada no teu espírito. Aonde fores, condenado, ela seguirá contigo.

 

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Lugar não se define, lugar se (con)vive. Lugar não se escolhe, mas, sim, o faz escolhido. Ter ou não ter um lugar, eis a pior das questões.

 

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“Doravante seguirás sem norte, sem direito a retorno e condenado a vagares sem memória dos teus!”

Mal ouviu aquela condenação, ele fez o sinal da cruz e suspirou, sem vida.

 

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Escolheu uma terra alta, a fim de evitar a calamidade das enchentes. Dividiu-a em partes francas para impedir a luta pela terra. Sabia-a promissora; mas, quando quis atrair seus habitantes, sobreveio a decepção: todos acharam-na sem brilho nem com suficientes atrativos.

“Sem passado, sem mitos, sem mortos… Uma terra vazia, morada de seu ninguém!”; confessou o último a sair.

 

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Cada passo que ele dava o levava para mais próximo do que fugia.

Todo grito que ele bradava lhe demonstrava quão surdo estava à sua voz interior.

 

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Ele construiu a sua casa no campo mais distante e calmo. À noite, gritava de raiva, incomodado com tamanha pasmaceira.

 

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A guerra exigia-lhes a migração rumo a países distantes, onde seriam muito bem acolhidos.

Contudo aquela velha senhora chorava, copiosamente, apesar do leito quente, da mesa farta e da nova casa. Eram as lembranças a fustigarem seus lençóis com as esporas da saudade.

 

“Estou velho,

o silêncio, com suas esporas,

fustiga o meu corpo.”

(Hildeberto Barbosa Filho, em De quase nada se faz um poema)

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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