Clauder Arcanjo – Honesto

Descia do carro da repartição exatamente às cinco da tarde; depois de rondar, manhã e tarde, toda a cidade flagrando os atos de desonestidade. “Raça de nojentos!”

Aplicava as sanções legais com flagrante fúria, sem falar nas palavras candentes que, desapiedadamente, sapecava nos lombos dos homens e mulheres da província. Subia os braços rumo ao céu, modulava a voz em clamor messiânico e disparava: “Ó meu Deus! Aonde vamos parar com tanta improbidade?”

Entrava na repartição, dava seguimento aos processos contra os larápios do erário e dilapidadores do patrimônio público, sorvia uma xícara de café requentado, que fazia questão de trazer de casa para não onerar os gastos da secretaria, e fechava a porta com trancas e cadeados; seguindo, a pé, para casa.

Lá chegando, soprava o vento que trazia nos pulmões cansados, ufa!, e entregava-se ao gozo e ao descanso da cadeira de balanço, sempre à sua espera na varanda dos fundos. Os meninos pediam-lhe confeitos e balas, ele catava uma moeda no fundo da algibeira e, antes de entregá-la, chamava-os ao colo para o aconselhamento seguidamente repetido:

— Nunca aceitem nada que venha das mãos de estranhos. O que vale para vocês é somente aquilo que vem do suor do pai de vocês. Fui claro?

Os dois pirralhos davam o sim, como certeza de que, tão somente assim, a mão do pai Honesto se abriria. Corriam, então, para a bodega do Seu Gerardo. Lá entrando, metiam as mãos ávidas nos potes de confeitos, açambarcando o que dava para levar.

— O dinheiro dá, Seu Gerardo? — e apresentavam a mísera pratinha, dispondo-a sobre o balcão.

O bonachão do comerciante pegava do centavo; e, estalando, com carinho, as orelhas dos meninotes, asseverava-lhes:

— E ainda sobrou um troquinho para o outro dia! Fui claro?

A distribuição para os amigos já se dava na calçada. “Um para Tião; um para Batista; um para Zequinha, que deve levar outro para o Marquinhos, que não veio porque está dodói… Ei, venha cá! Você aí, qual o seu nome? Por que anda tão triste? Pegue um confeito também. Amanhã, volte; ouviu? Meu pai é muito honesto, e sempre nos dá dinheiro para umas balinhas. Fui claro?”

Gerardo olhava para o suíço e percebia que era hora de baixar as portas. Retornava à sua residência no Largo da Matriz montado na reluzente lambreta; não sem antes tocar a meninada, com seus regalos doces, no rumo de casa.

— Vão, vão! Que a noite já se anuncia. E não deixem de escovar os dentes antes de dormir. O diabinho da madrugada adora furar os dentes dos pequenos que dormem sem escovar… e sem rezar. Xô, xô!…

E a algazarra da dispersão da criançada arrancou-lhe o último riso do dia.

Em casa, o trinado do canário belga na gaiola e o vazio da enorme sala. Viúvo, não tivera filhos, Gerardo teria uma longa noite. Lídia, sua empregada, deixara-lhe a sopa sobre o fogão, pronta. Bastava esquentar. Sentou-se na cadeira de balanço na varanda da frente, hauriu o vento ainda quente do crepúsculo e… fechou os olhos. Nisto, levou a mão direita à algibeira e acariciou a pratinha que recebera dos bons meninos.

Dormiu com a moedinha entre os dedos, e sonhou um terrível pesadelo.

Na manhã seguinte, mal abriu o negócio, Seu Gerardo deu com a presença de Honesto, sobraçado com seu indefectível bloco de multas. O bodegueiro pediu licença, entrou, abaixou-se junto ao balcão onde dispunha do seu cofre, e, em vez de maços de dinheiro, desta feita apresentou à fiscalização uma reluzente peixeira, herança do seu velho patriarca.

— Raça de nojentos!… Vá ser “honesto” em outra freguesia. Fui claro?

Honesto entrou no carro da repartição e sumiu a toda, sem deixar rastros de probidade.

Clauder Arcanjo – [email protected]