Clauder Arcanjo – A vaidade de Pedro

Clauder Arcanjo – A vaidade de Pedro

O dia amanhecera como todos os anteriores — sol largo e franco, vento quente a fazer piruetas pelas ruas e calçadas —, mas uma coisa mudara desde a chegada de Pedro àquela pequena comunidade.

Chegara há pouco mais de um ano. “Com uma mão na frente e a outra atrás!”; segundo comentários da pia dama Gertrudes, avaliadora confessa de todos os passos dos filhos (e não filhos) daquela província. “Em busca de um novo Eldorado!”; nas palavras empostadas do recém-chegado. Com pouco, Pedro estabelecera-se no escambo de secos e molhados na Pedra do Mercado, e logo se intitulou um “promissor negociante nordestino”. Apesar de alguns colegas de feira alegarem que ele fechava poucos negócios, e nós veremos o porquê: tudo que caía em suas mãos, num passe de Midas, virava ouro; ou, ao menos, uma legítima prata.

Se Pedro, ao caminhar displicente pela mataria, colhia uma florzinha do campo, uma desenxabida retirada de um pé de mofumbo, logo a levava para a lapela do seu jaleco surrado, cofiava o bigode ralo, assuntava as calças de brim, com ares de aristocrata e de exímio conhecedor da flora nativa, e começava a propalar, aos quatro ventos, que tivera a sublime sorte de achar uma das flores mais raras da caatinga. “Minha orquídea!…” E haja a mirar o botão da flor, embevecido, a se sentir o centro da atenção de todas as abelhas exigentes, as quais, na certa, logo estariam a sobrevoar-lhe o cocuruto de rei do néctar.

Se Pedro adquiria, no calor do resto da feira do domingo, um pangaré magricelo, pejado de carrapato e de espinhaço duro, cuidava de banhá-lo e ajaezá-lo; e, no final da tarde, já desfilava pelas ruas de Licânia, no rumo da Igreja Matriz, como se montasse um corcel das Arábias, ou um inglês de sangue puro. “Meu rocinante!” E se lhe riam, nem dava trela aos “desafortunados”, colocando tudo na botija da suprema inveja.

Certa manhã, como restos a pagar de uma conta que fazia tempo não recebia do cigano Belmar, tomara posse de uma galinha velha. Velha, arrepiada e, ainda por cima, por demais entristecida pela doença do gogo. Não se fez de rogado: penteou-lhe as penas, limpou-lhe o bico com água de limão, cortou-lhe as unhas… para, logo, a colocar na entrada do seu comércio; deixando vazar, de quando em vez, que se tratava de uma legítima franguinha dos ovos de ouro. “Esta raça de galináceo, gente, muda as penas antes de entrar num novo ciclo de postura. Quem vê pena não antevê a safra de ovos!” Uma semana após, a coitada não resistiu ao gogo e esticou as canelas secas, contudo Pedro atribuiu o fato ao mau-olhado de Dona Safira: “Sempre com seu olhar goro sobre os meus pertences!”.

— Desgraçado! A ver navios onde nem existem canoas — devolveu a patusca Safira.

 

***

 

O domingo de feira raiou como todos os outros — sol largo, forte e franco; vento morno a piruetar pelas ruas, becos e esquinas —, porém uma coisa iria mudar desde a chegada de Pedro a Licânia.

Um homem tomado pelas cãs entrou no Mercado, no final da tarde, com uma enfiada de curimatãs ovadas. Correu vários estabelecimentos oferecendo o fruto de sua pescaria, contudo ninguém lhe pôs preço. Ou por já terem feito as compras da semana, ou por estarem com os poucos cobres já gastos na pinga do Paulo Amaro.

Pedro observava tudo pelo canto dos óculos. Na primeira vez, dissera ao velho pescador que, na sua casa, todos eram mais amigos da carne e dos ossos.

Na hora do Ângelus, cansado, o velho despejou as curimatãs no chão e pôs a matutar o seu prejuízo. Neste exato momento, Pedro fechou a venda e se aproximou, fingindo passar ao largo.

— Para não dizer que não sou um homem caridoso, Velho, faço-lhe uma oferta para compensar a sua vinda de tão longe.

Jogou na mão do pobre pescador uma moeda de valor tão irrisório que nem lhe darei detalhes de valia.

Na casa do sem jeito e sem forças para argumentar, o pescador praguejou baixinho; apanhou a nica e deu as costas para Pedro, não sem antes bater o pó das alpercatas de rabicho.

— Desgraçado.

Pedro, ao se ver de posse das curimatãs, correu para casa, já sonhando com o pirão de peixe à noitinha daquele domingo.

— Santo e bendito pirão!

 

***

 

Na segunda-feira, Pedro, pela primeira vez, perdeu as forças e a renhida vaidade. Também, não era para menos. Passara a madrugada de calças arriadas, sobre o trono de porcelana no fundo da casa.

“Rei da peixada!”; entreouvia, desvalido e tomado pelo aperto das cólicas, entre uma visita e outra à fétida latrina.

— Velho desgraçado!

E o sol, largo e forte, acompanhado por uma ventania travessa, a cobrir de ouro uma nova alvorada em Licânia.

Clauder Arcanjo – [email protected]