Celso Furtado: 100 anos do paraibano que mudou a economia

O renovado debate sobre o papel do Estado na economia, suscitado pelo contexto da pandemia de covid-19, traz ideias do autor de volta para o centro da discussão, no ano de seu centenário.

Celso FurtadoCelso Furtado em foto de 2003, um ano antes de sua morte, aos 84 anos

Quando tinha apenas 17 anos, na Paraíba, Celso Furtado anotou em seu diário: “Hoje eu decidi que vou escrever um livro sobre a história da civilização brasileira.” O que poderia ser um devaneio juvenil se materializou duas décadas depois, quando o pensador publicou, em 1958, Formação econômica do Brasil, maior obra de referência do pensamento econômico brasileiro.

O clássico trouxe um até então inédito entrelaçamento entre história e economia. Furtado analisa os vários ciclos econômicos, do açúcar ao início da indústria, para identificar o cerne do subdesenvolvimento brasileiro. Estava ali a ideia que aprofundaria em quase 30 livros dali em diante: o subdesenvolvimento não era etapa natural de um processo, mas uma realidade perene, derivada da inserção do Brasil e países semelhantes, exportadores de insumos, na economia mundial – a dinâmica “centro-periferia”.

No último domingo (26/07), foi celebrado o centenário de nascimento do economista. Se o calendário de eventos e comemorações, que incluía seminários e quatro novos livros sobre Furtado, foi afetado pela pandemia, a conjuntura trouxe suas ideias de volta para o centro do debate. Durante a crise atual, a atuação do Estado como indutor e planejador da atividade econômica voltou de vez à carga.

Nos Estados Unidos e na Europa, governos lançaram mão de pacotes emergenciais orçados em trilhões de dólares. Mesmo entre economistas liberais, a intervenção estatal foi amplamente defendida nesses países.

“Mas antes mesmo da pandemia, há três ou quatro anos, já discutíamos um retorno do papel do Estado na França e na Europa, pelo que tem sido chamado de ‘políticas orçamentárias’. Além disso, ficou claro para muitos economistas que as políticas monetárias não são tão eficazes sozinhas”, comenta o economista francês Pierre Salama, que foi aluno, assistente e, depois, colega de Furtado em seu tempo como professor na Universidade Paris-Sorbonne.

“Esse retorno do Estado não significa reestatização, não é disso que se trata. É uma intervenção ativa, com políticas industriais inteligentes. Quando olhamos para alguns países asiáticos, percebemos que o intenso crescimento econômico não é resultado só da ação do mercado, mas do acompanhamento desse mercado pelo Estado, com o apontamento das escolhas que os agentes privados devem fazer”, completa Salama.

Furtado e sua viúva, a tradutora Rosa Freire d'AguiarFurtado e sua viúva, a tradutora Rosa Freire d’Aguiar

No Brasil, frente à pandemia, governo e Congresso criaram um orçamento especial de guerra para suspender mão do teto de gastos temporariamente e financiar o auxílio emergencial e a complementação salarial, além de mais linhas de crédito via bancos públicos. Segundo o IBGE, em junho os benefícios ao cidadão alcançaram direta ou indiretamente 104 milhões de brasileiros, quase a metade da população.

Na comparação com as iniciativas estrangeiras, todavia, o aporte ainda é tímido em termos de volume. As medidas tomadas até aqui são reconhecidas pelo próprio governo como muletas no pior momento da crise. O fechamento temporário ou definitivo de 1,3 milhão de empresas até meados de junho, quase todas micro, pequenas e médias, segundo o IBGE, fez surgir um consenso sobre a necessidade de um plano de retomada amplo.

O presidente Jair Bolsonaro tem sugestões de toda parte na mesa, mas convive com o contrapeso de uma equipe econômica criada para resistir ao aumento do gasto público.

Poucos estariam aptos como Celso Furtado, vivo fosse, a opinar na atual encruzilhada. O economista atuou, no início dos anos 1950, na criação e aplicação das técnicas de planejamento econômico da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), das Nações Unidas.

Em seguida, frequentou, como diretor do BNDES e depois ministro de Estado, o dia a dia de quatro governos: Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart e José Sarney. Exilado entre os tempos de serviço prestados para os dois últimos presidentes listados, esteve por 20 anos à frente das cátedras de Economia do Desenvolvimento e Economia Latino-Americana da Universidade Paris-Sorbonne, na França.

A despeito do currículo, não surpreenderia se Furtado fosse rechaçado hoje em dia por razões políticas. Foi o que aconteceu em 1964, quando seu nome constava na primeira lista de indesejados pela ditadura militar, e Furtado teve de deixar o país. No dia seguinte à sua cassação política, recebeu convites para lecionar em três prestigiadas universidades dos Estados Unidos: Harvard, Columbia e Yale, para onde acabou indo. Um ano depois, o presidente francês d

e direita, Charles de Gaulle, autorizou sua contratação para a maior universidade de seu país.

Em 1961, Celso Furtado foi a Washington para encontro com o então presidente dos EUA, John KennedyEm 1961, Furtado foi a Washington para encontro com o então presidente dos EUA, John Kennedy

Pierre Salama, que testemunhou enquanto estudante a chegada de Furtado à França, conta que as ideias do brasileiro revolucionaram a compreensão de desenvolvimento econômico na França. Até então, os franceses que estudavam o tema focavam as ex-colônias africanas, razão pela qual eram oficialmente chamados de “professores de colônias”. Não consideravam, por exemplo, a possibilidade de economias industrializadas conviverem de forma perene com o subdesenvolvimento, como é o caso do Brasil e de outras economias latino-americanas.

“Por outro lado, para os que eram de esquerda a única razão do subdesenvolvimento era o saque dos países do Terceiro Mundo. Não havia uma abordagem científica. E então chega Furtado e nos explica. Foi estrondoso, e ele fez muito sucesso”, já havia dito Salama à revista Cadernos do Desenvolvimento anos atrás.

Consagradora, a passagem pela Sorbonne duraria 20 anos. O período representou um doloroso hiato para o economista acostumado à dupla função de intelectual e estadista. “Ele ficava com a cabeça no Brasil”, lembra a tradutora Rosa Freire d’Aguiar, viúva de Furtado. Era difícil estar exilado para quem, até pouco, formulava políticas prioritárias de governo.

Foi o caso da criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959. Elencado por JK no mesmo nível de prioridade que a construção de Brasília, o projeto tinha o objetivo de promover e coordenar o desenvolvimento da região. Além da industrialização, Furtado propunha o fim do modelo latifundiário monocultor, mais propenso a riscos climáticos, e um desenho econômico adaptável à seca – na contramão das “políticas hidráulicas” que ocupavam o debate.

A iniciativa despertou grande interesse internacional. Em 1961, Furtado foi a Washington como superintendente da Sudene para se encontrar com o então presidente dos EUA, John Kennedy, que decidiu apoiar um programa de cooperação com o órgão. Embora exista até hoje, a iniciativa foi relegada a segundo plano durante a ditadura militar e não recuperou o protagonismo conferido sob a gestão do economista.

“Para ele, o conhecimento só servia se fosse para prestar serviço à comunidade”, comenta o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Furtado olhava as formas como a economia se relacionava com a vida social, para pensar em que medida poderia beneficiar a vida das pessoas em sociedade. Sua vida sempre se confundiu com a história da sociedade brasileira”, diz.

Deutsche Welle 

 

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