Café Santa Clara & Casa Paris

Por Márcio de Lima Dantas

Professor de Literatura Portuguesa da UFRN
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“Só agravava o prato que comia”
Adágio popular

Na rua Capitão José Severino, bem próximo a um logradouro no qual estavam estacionados carros de praça, que serviam de aluguel, tais como Rurais ou Jeeps, do lado esquerdo, havia um reputado café, espécie de restaurante e bar, conhecido pelas deliciosas iguarias expostas aos clientes. Era o Café Santa Clara, pertencente à senhora Severina Dias da Silva (30.07.1910 – 27.10.1986). Vendia-se bolos, doces, queijos, chocolates de diversos tipos, pudins, bolinhas de carne, linguiça, buchada, conservas, enlatados. Havia uma clientela cativa, aumentada nos sábados, nos quais ocorria a concorrida feira semanal.

Severina de Cunegundes era uma senhora baixa, um pouco corpulenta, vestia-se sempre com roupas discretas. Além de ser responsável pela coordenação da feitura das comidas oferecidas para a venda, também estava em pé, atrás do balcão, atendendo a freguesia. Cordata, todos a respeitavam. Era impossível vê-la sem estar envolvida em alguma espécie de atividade, seja do café, seja da casa de morada, extensão nos fundos, dando ir até a outra rua defronte da igreja matriz, no qual havia uma bela fachada, com uma pequena área coberta por uma linda trepadeira, perfumada durante à noite, e uma grade de ferro. Quase ninguém detinha essa planta em seu jardim.

Botando sentido no que foi a vida de Severina de Cunegundes, é próprio dizer de uma estreita relação com o trabalho. Pusera a razão da sua existência em uma rotina cujo labor ocupava quase o tempo inteiro. Não se sabe se tivera o que se chama vida social, das pessoas “mais ou menos”, nos clubes da cidade, nos bailes de carnaval, nas associações que congregavam senhoras católicas, como o Apostolado da Oração, ou qualquer outra aglomeração de diversão ou festa cívica.

Na verdade, sua vida parecia restrita à casa, espécie de clausura que voluntariamente construíra. Sintomaticamente a casa estava encostada as duas outras vizinhas, sem beco ou oitão permitindo abrir um espaço. Pouco se via o movimento da casa se olhássemos para a frente que dava para a ampla praça da Igreja Matriz. Essa mulher desde sempre lançara âncoras que a conduzia a um cotidiano eivado de horas nos quais o relógio clamava seus mecanismos, lembrando dos compromissos, escandindo o cotidiano por meio de um ritmo intitulado trabalho. Isso mesmo, o café ocupava seu corpo e sua cabeça, não havia mais espaço para nada, a não ser uma redobrada atenção com os agregados da casa: Tião, Chico, Maura e Raimunda. Um ou outro podia ter laços de sangue, contudo, a maioria foi se achegando, despertando relações de afeto, demandando cuidados, incorporados à casa, em um movimento inconsciente de organizar uma família, pensando muito mais em si, nesse cultivo amoroso, do que nos outros.

O certo é que se torna difícil separar uma coisa da outra. Ao haver uma doação e um cuidado para com o outro também procedemos a uma medida de nossa capacidade de amar e sermos amados. Cada um dos quatro acima aludidos, comportava uma quota de responsabilidade, de acordo com as sessões do café, podia ser levar os mandados ou a compra de algum insumo, como Tião; também podia ser a feitura de comidas, como é o caso de Raimunda ou Maura. Ninguém havera de se dar ao luxo de nada fazer. Quando o dia chegava, todos implicitamente já sabiam o que lhes competiam elaborar, a quantidade e a qualidade.

Assim sendo, o exercício diuturno do trabalho era entendido como uma maneira não apenas de preencher o tempo com um minério edificante, mas muito mais como uma compreensão das horas dedicadas às atividades requeridas pelo café, conduzindo a uma explicação do estar no mundo, por meio de ganhar a vida através do suor, elevando o trabalho a um patamar mais alto, imprimindo respeito e dignidade, nada devendo a ninguém, dando-se o luxo de não ter resposta para dar a ninguém. Apenas elaborar uma funcionalidade que, por sua vez, engrandecia e deixava a alma plena de uma virtude eleita como a condimentadora da vida com especiarias capazes de dar bom sabor a tudo que fazia de boa vontade.

Agora vamos nos deter sobre o proprietário da Casa Paris, o mais sortido armarinho de miudezas, não só da cidade, massa de toda a região ao derredor. Era o Sr. Cunegundes Hemetério da Silva (03.03.1902 – 12.04.1981), ajudado por Chico. Aos sábados, como o movimento era maior, quase sempre tinha uma mocinha que ajudava a atender a clientela. Ficava difícil dizer quem era o mais calado dos dois, se o Sr. Cunegundes ou seu filho adotivo Francisco Dantas de Rezende (18.05.1938 – 02.12.2008).

O armarinho fazia jus à sua fama, com uma variedade enorme de materiais dedicados ao ataviamento de roupas sociais, de banho ou de cozinha. Podíamos encontrar gripi de todas as cores, sianinhas, fitas de toda largura, bicos, enfim, tudo que dissesse respeito aos arremates finais de uma costureira sobre uma roupa, concedendo uma dimensão estética a vestimenta.

A vida desse senhor limitava-se a administrar o seu negócio. Sabendo o caminho da loja até o café, onde era sua casa. Andava sempre lentamente, como se contasse os passos de uma vereda desde muito conhecida, pouco ou nada lhe interessava dos transeuntes, se iam ou se vinham. O importante era encerrar o dia cansado, com seu dever cumprido. Malgrado o cansaço de músculos e ossos, provava da brisa do entardecer, como se ela aportasse no seu frescor a aprovação desse bem estar com os outros, com sua família, mas, antes de tudo, consigo próprio, que é o que mais interessa e o mais importante, diante da vida e de sua obrigatoriedade de não cairmos em um vazio existencial. Por isso, o sensato e o saudável que é trabalhar, ocupando a cabeça com amanho de uma ocupação digna e edificante.

Com efeito, desenvolve-se uma boa maneira no amanho de dias sempre iguais. Isso interessa pouco aos que compreendem a vida como amar e trabalhar. Assim adquire-se uma lídima autonomia perante seus semelhantes, que podem até mangar, mas nunca capazes de dizer que o outro incorre em erros e práticas contra quem quer que seja. Não dá nada a ninguém, mas também não quer nada de ninguém. De maneira sutil e silenciosa lança o outro contra a parede; encostado, serve de exemplo a quem ousar chegar perto com suas piadas, ironias e deboches, tão caros a parte da população.

O Sr. Cunegundes não era afeito a polêmicas que a nada conduzem. Com sua forma de vida, plena de discrição e silêncio asseverava a quem interessasse estar com ele ou contra ele, parecia dizer sem falar: “Com licença, mas eu vou passar”.

Por fim, não tenho muito mais a dizer. Gostaria de falar dos agregados que se fizeram família, Raimunda Dias de Barros (05.06.1954), chegou com seis anos, era sobrinha de Da. Severina. Os outros três não eram parentes de sangue: Maura chegou com nove anos, Chico chegou com cinco anos.

Parece que sua boca, ao nascer, recebera um lacre possível de emitir tão somente discursos eletivos, configurando uma natureza comportamental que o conduzisse a uma liberdade interior, sem o compromisso ou a responsabilidade de ser refém do que pronunciara.

Chico, ocluso em uma aura de silêncio, mesmo em rodas neutras de homens pertencentes ao senso comum, já não sabia se nascera assim ou o exercício do lacre na língua advinha de uma sujeição ao contínuo exercício desde criança, em uma mescla de timidez e indiferença ao que acontecia no seu entorno.

E se era de encontrá-lo onde quer que fosse? Estava sempre com o aspecto asseado, discretas roupas limpas, sapatos pretos envernizados. Encostava-se nas paredes, ao se juntar a outros homens matando o tempo. Encerrado em si mesmo, restava a dúvida se estava prestando atenção às conversas ou seu espírito vagava em algum lugar no ermo da caatinga da região.

O mundo para Chico de Cunegundes estava restrito a um segmento de rua entre o armarinho e o café. O diâmetro de espaço no qual circulava era exíguo. Parecia se sentir seguro em lugares com pleno domínio e visibilidade do que ali sucedia, sendo possível haver uma previsibilidade no comportamento dos grupos de homens passando as horas nas calçadas, nas horas menos tépidas da tarde. Talvez fosse pouco afeito às pessoas desconhecidas, evitando surpresas que não estivessem consoante suas demandas interiores.

Raimunda, sobrinha de Da. Severina, viera de um sítio para estudar na cidade, bem como ajudar a Tia na casa e no café. Tinha apenas seis anos: uma mocinha destemida e trabalhadeira. Logo quando chegava da escola, dirigia-se à tia, para saber o que estava pendente e quais eram suas obrigações do dia. Estava sempre de prontidão, nada recusando fazer, afinal já era uma mocinha. Formou-se e aposentou-se como professora.

Havia uma outra pessoa que também era agregado, Tião, da família Rodrigues, responsável por efetuar os mandados. Ao que parece, a Sra. Severina atraia pessoas de boa índole e com capacidade de trabalhar, compreendendo que é por meio da labuta diária que se edifica, sobre a rocha, a morada da vida.

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