AXÉ DE OLORUM

NILO EMERENCIANO - Arquiteto e escritor

Era uma casa de muro alto como as outras, ali em Potilândia. Talvez, se alguém observasse com atenção, percebesse um movimento diferente dos outros dias. Alguém abria o portão para os poucos visitantes, que, um de cada vez, recebiam nas mãos uma vasilha de cerâmica e derramavam um pouco do conteúdo em direção aos pontos cardeais ao mesmo tempo em que repetiam algumas palavras rituais. Depois eram conduzidos pela lateral da casa para um espaço existente nos fundos, onde entravam depois de deixar os sapatos na entrada.

Eram instalações simples. O que chamava a atenção era que em um dos lados, separado por uma cortina fina, havia um altar (ou peji) coberto de imagens das mais diversas divindades, orixás ou santos católicos, pretos velhos e caboclos, tudo encimado por uma bela representação de Jesus, ou Orixalá, como queiram. Velas deixavam o ambiente envolto em uma penumbra agradável, e predominava um cheirinho gostoso de incenso.

Quem nos recebia era uma mulher grande, branca, simpática, vestida de branco com uma larga saia rodada. Saudava a cada um que entrava dizendo – “Axé de Olorum”, ao que lhe respondiam:- “Olorum axé!” Ela dirigia o ritual. Benzia os quatro cantos da sala, cantando “essa casa tem quatro cantos, cada canto tem um santo, Pai, Filho e Espírito Santo…”. Depois defumava cada uma das pessoas: “Eu defumo/eu defumo/ esses filhos/para Jesus nos abençoar”. E só então tinham início os trabalhos.

Eu cheguei ali levado pela curiosidade (havia lido Jorge Amado) e demorei a entender tudo aquilo. Era Umbanda? Candomblé? Umbanda é uma religião com seus ritos próprios e inclusive uma federação que em Natal funciona no bairro das Rocas. Candomblé tem claras origens africanas, cultua Orixás, tem uma hierarquia estabelecida em mães ou pais de santo (babalorixás e ialorixás), filhas e filhos (iaôs). Então o que era aquele culto? Fui encontrar a resposta algum tempo depois, na leitura de Meleagro, de Luís da Câmara Cascudo, que rastreia a origem dessa prática até os antigos oráculos, adivinhos, feiticeiros, sibilas, xamãs. Carlos Castañeda em “A Erva do diabo” relata sua convivência e experiências com Dom Juan, um bruxo mexicano. Ernesto Bozzano, em “Povos primitivos e manifestações supranormais”, registra e classifica essas ocorrências. Vamos encontra-las em toda parte, em todos os tempos e em todos os povos. São pessoas independentes, sem vinculação com qualquer religião, apesar de manter laços evidentes com todas elas, herdeiras de antigas tradições e seus mistérios. Fácil de lembrar: o faraó do Egito utiliza os recursos psíquicos de José para interpretar seus sonhos recorrentes. Saul consulta a feiticeira de Endor, buscando falar com o falecido Samuel, para saber da batalha que se avizinha. Creso, rei da Lídia, antes de invadir a Pérsia consultou o Oráculo de Delfos, que profetizou: “Ataque e destruirás uma grande nação”. O oráculo não especificou que a nação a ser destruída era a do próprio Creso, que perdeu a batalha e seu reinado. Essas consultas, apesar de nem sempre darem certo, eram prática comum na antiguidade.

Essas pessoas supradotadas atuam através de consultas, seja para casos de doença, desemprego, filhos complicados, maridos (ou esposas) desajustados, distúrbios de ordem psíquica ou dificuldades na atividade comercial. Foram, dependendo do período histórico, aceitas, toleradas, rejeitadas ou perseguidas e até executadas, mas jamais eliminadas de todo. Há até um manual, o Malleus Maleficarum, (O Martelo das bruxas), redigido na Idade Média, ensinando como identificar e combater as ditas bruxas.

Cascudo relata a perseguição por parte da polícia, prisão e até humilhação desses ditos Mestres Catimbozeiros em Natal. Talvez por isso tenham desaparecido ou procurado abrigo duvidoso nos cultos tradicionais. Há dois livros fundamentais para quem deseja entender um pouco mais: “A morte branca do feiticeiro negro”, de Renato Ortiz e “Entre a cruz e a encruzilhada” de Lísias Nogueira Negrão. Ambos falam um pouco do processo de branqueamento dessas tradições em busca de sobrevivência, algumas mesclando práticas kardecistas ou católicas aos seus cultos (tive oportunidade de ver, em uma ocasião, um pai de santo “puxar” um terço inteiro no início de uma gira).

Porque estou falando em tudo isso? Um pouco por gostar de tudo que vem de tradições populares, com cheiro de povo, “de debaixo do barro do chão”. Danças, canções, folclore, crenças, práticas religiosas. E um pouco porque talvez seja mais fácil e saudável entender os mistérios do que decifrar os enigmas do Brasil e das mentes dos seus dirigentes, cada vez mais doentias e, portanto, de difícil compreensão.

NATAL/RN

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