APONTAMENTOS DE UMA NOITE QUENTE

Clauder Arcanjo

 

Para meu amigo Bebeto (Bernabe), filho de Angola e adotado pelo Brasil.

 

No cair do dia, se é que dia tão quente cai, eu percebo o trinar de um pássaro nos galhos de uma árvore na avenida. O canário não liga para o tráfego, muito menos para as minhas rabugices de verão.

— A teimosia é maior do que as labaredas do Inferno! — sopra-me Companheiro Acácio; ao meu lado, frio como uma lâmina no pescoço de um condenado.

— Vá para os quintos, seu…

— E, pensava eu, que já estávamos nele! — devolve-me, acacianamente.

 

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Todas as lâmpadas acesas na grande avenida não clareiam a profunda solidão dos excluídos; estes a dormitarem, abandonados, nas calçadas burguesas.

Enquanto isso, na cobertura do arranha-céu, um burguês sonha com a extinção dos pobres, sem pensar em dar fim à pobreza.

 

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Não nomines os omissos, se não tiveres a coragem de pôr o teu nome no topo da lista. Todo crítico é, antes de tudo, um sonso.

 

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Lá na catedral os sinos dobram pelo futuro promissor. Enquanto o presente estarrecedor escorre pelos ralos do cotidiano infecto.

 

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Era tão canalha, que aplaudia a matemática sacana dos novos economistas. Estes pregavam a defesa — vestidos de paletó, gravata e em timbre esnobe — da alta dos juros, para protegerem os pobres da sanha abjeta dos que ficavam, dia a dia, compostamente mais ricos.

 

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Quando ele lia os clássicos, noite adentro, sonhava com o enterro da gramática, única esperança de ele se esconder no pântano da mediocridade.

 

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Duvidava da humanidade, mas cria, como um novo profeta, que anos melhores chegariam, de forma inconteste, por todos seguirem os seus “divinos conselhos”.

— Nem só de Deus e o Diabo vive o homem! — escorraçava-lhe Sátiro, o bêbado de Licânia.

 

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Ouvido de sogra é tratado como penico por genro ordinário.

 

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Antes de me recolher, quando a noite quente recebia os primeiros sinais de uma leve brisa amena, Companheiro Acácio me propôs a releitura de Utopia, de Thomas More.

Bati-lhe a porta e fui verificar o meu horóscopo, precisava das luzes dos astros para confiar no brilho de um novo amanhec

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