Alex Medeiros: 70 anos do “soul”

@alexmedeiros1959

No verão de 1954, enquanto o ator James Dean, com 23 anos, conseguia uma carteira de motorista na Califórnia (morreria no ano seguinte batendo seu Porsche num Ford Tudor), o cantor Ray Charles, aos 24 anos, rodava de carro pelos EUA cumprindo sua agenda musical. Num daqueles dias, ouviu no rádio do automóvel uma canção gospel chamada “It Must Be Jesus” que o levou a compor uma versão no ritmo R&B com toques de jazz, seus gêneros favoritos.

Com ajuda do maestro da sua banda, Renald Richard, ele escreveu a música “I’ve Got a Woman”, numa batida mais acelerada destacando saxofone, piano e uma bateria ao estilo das big bands. Meteu um suingue na voz, repetindo o termo “oh, yes” dos cânticos evangélicos numa letra que falava de uma mulher que o ajudava e lhe dava dinheiro. Foi um escândalo. No filme Ray, com Jamie Foxx, há uma cena com sua mulher chamando a canção de um sacrilégio.

Aquela mistura de blues, jazz e gospel, alterando melodia e letra das orações das igrejas dos negros, provocou polêmica também nos brancos. Mas Ray Charles não pensava nisso, e dizia que fez a canção para todos dançarem.

Seguiu tocando e dividindo opiniões, gravou um single em dezembro de 1954 e viu dois anos depois um rapaz branco gravar também; um tal de Elvis Presley, que em pouco tempo foi batizado no mundanismo como o rei do rock ‘n’ roll.

Mas foi somente quando incluiu “I’ve Got a Woman” em discos de 1957 e 1959 que os críticos passaram a chamar aquilo de “soul”, a música que erguia a alma ao céu, um novo ritmo originário do gospel cantado em todas as igrejas.

Aquela canção alicerçou a estrutura melódica do trabalho de Ray Charles até estabelecer o novo gênero “soul music” em 1959 na gravação de “What’d I Say” no LP de mesmo nome. A partir dali já não era acusado de vulgarizar a oração.

Oficialmente a “soul music” tem pouco mais de 60 anos, mas muitos especialistas consideram que a fusão de R&B, jazz e gospel em “I’ve Got a Woman” é o primeiro registro do ritmo e a assinatura musical de Ray Charles.

Evidente que outros clássicos vieram depois, como “Georgia on my Mind” (que virou hino oficial do estado da Georgia), “Hit the Road Jack”, “Unchain My Heart” e “What’d I Say”, mas toda genialidade tem que ter uma gênese, né?

A versão de Elvis, por exemplo, acabou se transformando num clássico do rockabilly. Os Beatles gravaram duas vezes para programas especiais da BBC de Londres, apesar de não a terem colocado em nenhum dos seus 16 discos.

A música tem apenas 2 minutos e 56 segundos, que são recheados de uma magia rítmica que fez dançar gerações. Ray Charles brinca com as notas em vocais que se alteram constantemente entre o alto e o baixo em cada verso.

Outra coisa marcante é a maneira como Charles pronuncia o grito “oh, year”, da tradição das igrejas, e que tanto contribuiu para os que vieram após ele, como os Beatles que acabaram transformando num movimento mundial.

O refrão da música “She Loves You”, de 1963, um “yeah” repetido, logo virou o “yé-yé” na França, Portugal, Itália, Espanha, ganhando a versão brasileira “iê, iê, iê”. Para quem viu o diabo na beatlemania, taí a origem cristã da onda.

Publicado na Tribuna do Norte de 10.12.23

 

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