Alemanha, Os Tribunais de Nurembergue e a superação da herança nazista

Alemanha marca os 75 anos do primeiro Tribunal de Nurembergue. De início, a corte criada pelos Aliados foi rejeitada por uma população que queria esquecer. Mas a atitude mudou desde então.

“A culpa é sempre algo pessoal”, diz Niklas Frank, de 81 anos. É um pensamento que toca o problema fundamental da Alemanha após a Segunda Guerra Mundial: como o trauma de uma nação pode ser elaborado na cabeça de cada cidadão? Como assumir pessoalmente a culpa dos pais?

Embora muitos alemães tratem isso como um problema abstrato que pode ser recalcado em silêncio, a questão cortou a vida de Niklas Frank como uma faca. Ele é filho de Hans Frank, o governador-geral dos territórios poloneses ocupados durante a Segunda Guerra, que supervisionava diretamente quatro campos de extermínio nazistas.

Frank ainda se lembra de, aos 6 anos, ver sua família se recusar a reconhecer a culpa de seu pai enquanto ele respondia ao primeiro processo de Nurembergue, iniciado há 75 anos, em 20 de novembro de 1945. Hans Frank foi enforcado em outubro do ano seguinte.

O fardo da punição de criminosos

Em 1945, a maioria dos alemães ainda não estava pronta para reconhecer sua culpa, mas empenhada em sobreviver ao fim da guerra. A infraestrutura e a economia do país estavam em ruínas, milhões de famintos refugiados alemães chegavam dos territórios perdidos no Leste, expulsos pela União Soviética. A população tinha à frente quatro anos sem governo, no limbo da ocupação militar.

Em meio a isso, o primeiro e mais importante Tribunal de Nurembergue – o único organizado pelos quatro Aliados – deveria durar 11 meses, ouvir 240 testemunhas e ler cerca de 300 mil depoimentos. Os veredictos não foram conclusões precipitadas: para os 24 réus – figuras poderosas do regime nazista – o tribunal proferiu 12 sentenças de morte, sete sentenças de prisão (de 10 anos à prisão perpétua) e três absolvições totais.

Tribunal de Nurembergue completa 75 anos

Mas, apesar do cuidado que foi tomado, naqueles primeiros anos após a Segunda Guerra a maioria da população alemã rejeitava os julgamentos como “justiça do vencedor”. “Essa era a opinião dominante: rejeição total desses julgamentos. As pessoas acreditavam que eles eram unilaterais. Os jornais da época estavam cheios dessa opinião”, diz o jurista e escritor Ingo Müller, autor do livro Furchtbare Juristen (Juristas do horror), que explorou o legado nazista no Judiciário alemão. “Os nazistas ainda tinham influência na cabeça do povo alemão, e os julgamentos de Nurembergue não mudaram isso em nada.”

Havia algum apoio para o argumento da “justiça do vencedor” nos Estados Unidos: o juiz da Suprema Corte William Douglas argumentava que os Aliados haviam criado leis ex post facto para atender aos crimes. E não parecia exatamente promissor que a principal juíza soviética, Iona Nikitchenko, tivesse presidido alguns dos notórios julgamentos-espetáculo de Joseph Stalin na década de 1930.

Chanceler federal Konrad Adenauer e seu chefe de gabinete, Hans GlobkeChanceler federal Konrad Adenauer e seu chefe de gabinete, Hans Globke

“Acabar com o farejamento de nazistas”

Tudo isso ajudou o público alemão a negar a legitimidade de Nurembergue por décadas. Müller se lembra de professores de Direito internacional, anos depois, ensinando que os bombardeios aliados contra cidades alemãs eram crimes contra a humanidade iguais ao Holocausto e deveriam ter sido punidos também – uma opinião que hoje só é aceitável em grupos de extrema direita.

Depois que a nova nação República Federal da Alemanha (RFA) foi criada, em 1949, a ênfase do chanceler federal Konrad Adenauer era, basicamente, perdoar e esquecer. O primeiro chefe de governo, que nunca fora nazista, não se opôs a aceitar membros poderosos do partido de volta à liderança do país. Isso ficou mais visível em sua escolha do chefe de gabinete de 1953 a 1963: Hans Globke, um alto funcionário do Ministério do Interior de Hitler que ajudou a criar as infames Leis de Nurembergue de 1935, as quais consagraram como lei o antissemitismo e o racismo do Partido Nazista.

Isso ocorreu, em parte, por necessidade, já que o novo país precisava de funcionários experientes. “Mas acho que ele também encarou Globke como uma figura simbólica”, afirma Müller. “Ele estava dizendo ‘Olhem, seus velhos nazistas, se vocês se juntarem à nossa democracia e pararem com seus Sieg Heils [saudação nazista] e antissemitismo, nada vai acontecer com vocês’.”

Adenauer estava ciente do sentimento no país: em 1951, milhares se manifestaram em Landsberg, Baviera, contra as execuções na instituição para prisioneiros de guerra dos EUA, de 28 criminosos de guerra condenados em Nurembergue. E num debate do parlamento sobre ex-nazistas serem autorizados a ocupar cargos oficiais, em outubro de 1952, Adenauer foi aplaudido ao declarar: “Acho que devemos parar de farejar nazistas. Pois podem estar certos: se começarmos, não se sabe onde isso vai acabar.”

Nazistas na Alemanha comunista

A situação era praticamente a mesma na República Democrática Alemã (RDA), no leste, embora em circunstâncias muito diferentes. A União Soviética inicialmente enviou dezenas de milhares de ex-nazistas para a prisão ou a morte, e o governo comunista da Alemanha Oriental transformou o antifascismo num dos pilares centrais de sua ideologia de Estado. Para tanto, o Ministério da Segurança Estatal, apelidado Stasi, mantinha um vasto arquivo de sobre atividades nazistas.

Porém bem poucos alemães-orientais foram julgados em tribunal: o principal objetivo do arquivo era expor os nazistas em posições oficiais na Alemanha Ocidental, e assim embaraçar o novo governo de Adenauer, que a RDA nunca se cansou de retratar como descendente capitalista-imperialista direto do Terceiro Reich.

Os Aliados, enquanto isso, haviam voltado a atenção para seus novos inimigos na década de 1950. O início da Guerra Fria levou os Estados Unidos a desistirem do que Müller chama de “ilusões” sobre a reeducação dos alemães. “Acho que os Aliados acabaram por fazer as pazes com a Alemanha no início dos anos 50: eles disseram ‘Ok, a suástica não será mais exibida e ninguém mais vai gritar Sieg Heil, os alemães são um povo normal de novo.'”

Mulher entre duas longas estantes de arquivoArquivo da Central para Investigação de Crimes Nacional-Socialistas, em Ludwigsburg

Progresso lento

É uma peculiaridade da lei alemã que, embora negar o Holocausto seja ilegal, participar dele nunca foi formalmente reconhecido como um crime em si. Ou seja: indivíduos podiam ser acusados ​​de homicídio ou cumplicidade, mas só se ficasse realmente provado que estiveram envolvidos em assassinatos individuais.

Mas o Holocausto foi um crime de dimensão totalmente diferente: se todo um sistema é assassino, como processar as engrenagens da máquina, que talvez nunca tenham visto as vítimas? Como processar os maquinistas, os guardas de campo de concentração ou os “perpetradores de escrivaninha”, como os alemães passaram a chamar os administradores que organizaram a matança em massa?

Depois que os julgamentos de Nurembergue terminaram, em 1949, levou quase uma década para a Alemanha começar a reconhecer seus próprios crimes no tribunal. O primeiro processo alemão contra criminosos nazistas começou na cidade de Ulm, no sul do país, em 1958, quando 10 membros de uma unidade da SS foram acusados ​​do massacre de 5.502 judeus na fronteira com a Lituânia. Mas como nenhuma testemunha conseguiu identificar um único agressor entre os réus, as condenações foram limitadas a cumplicidade.

O caso Ulm, no entanto, representou um marco. Foi o estímulo para os governos estaduais criarem a Central dos Judiciários Estaduais para Investigação de Crimes Nacional-Socialistas, na cidade de Ludwigsburg, que começou a reunir registros sobre os criminosos nazistas. Isso ajudou a abrir processos contra 22 réus no famoso julgamento de Auschwitz em Frankfurt em 1963, quando sobreviventes testemunharam contra os homens que os torturaram sadicamente.

Ainda assim, demorou até o século 21 para que o Judiciário alemão processasse alguém por participarem intencionalmente do Holocausto. Isso só aconteceu após a condenação histórica em Munique, em 2011, de John Demjanjuk, um colaborador ucraniano que trabalhou como guarda no campo de concentração de Sobibor.

Esse precedente – de que qualquer um que tenha trabalhado num campo de concentração em qualquer cargo possa ser acusado de cúmplice de homicídio – gerou uma onda tardia de novas investigações em Ludwigsburg, que nos últimos anos trouxe a condenação de alguns nonagenários, incluindo Oskar Gröning, em 2015; e, mais recentemente, Bruno D., em julho de 2020, cujo julgamento em Hamburgo teve que se realizar num tribunal para delinquentes juvenis, já que ele tinha 17 anos quando começou a servir como guarda no campo de concentração de Stutthof.

Para Müller, que considera os julgamentos de Nurembergue uma conquista histórica, o legado mais devastador é que, depois que a República Federal foi fundada, o sistema judiciário nunca reconheceu a legitimidade dos veredictos proferidos naquela corte.

A lei alemã, ressalta Müller, determina que funcionários públicos condenados sejam destituídos de seus empregos e percam sua aposentadoria. Contudo isso não aconteceu com os condenados em Nurembergue, e alguns até receberam milhares de marcos alemães em salários atrasados ​​e aposentadorias ao serem libertados das prisões aliadas.

Foto em preto e branco de uma sala de tribunalEm 1963, 22 réus foram processados no famoso processo de Auschwitz, em Frankfurt

Criminosos estão velhos e morrendo

O historiador Efraim Zuroff, diretor do Simon Wiesenthal Center em Jerusalém, disse à DW numa entrevista, em 2015, que, embora a Alemanha tenha demorado a encarar sua culpa, ela já fora bem longe.

“No início havia uma tremenda oposição aos julgamentos de nazistas na Alemanha. Eles não conseguiram sustá-los completamente, mas alguns dos veredictos eram simplesmente ridículos. Quem serviu em [campos de extermínio alemães] Sobibor ou Treblinka só recebeu alguns anos [de prisão]”, comentou Zuroff, um israelense nascido nos Estados Unidos que coordena as pesquisas do centro sobre crimes nazistas.

Mas desde então, o país percorreu um longo caminho, ressalta: “Estamos a anos-luz de distância daqueles dias dos anos 60 e 70, em termos de conhecimento sobre o Holocausto, de sensibilidade e de compreender quão horrenda foi essa atrocidade. Se eles tivessem aplicado os mesmos critérios de hoje há 40 anos, o número de casos teria se multiplicado por 40 ou 60.”

Zuroff destacou que a Alemanha está bem em relação a outros países que estavam alinhados com a liderança nazista. “Há uma enorme mudança. Essa enorme mudança veio muito tarde, mas veio. A Alemanha é pelo menos um país onde nazistas são processados. Compare isso com a Áustria, onde não foi feito nada de significativo nos últimos 30 ou 40 anos. Na Alemanha, há vontade política para processar nazistas.”

A condenação de nazistas na Alemanha, que começou com os julgamentos de Nurembergue há 75 anos, está chegando a sua fase final. Isso também significa que o futuro da agência judicial de “caçadores de nazistas” está em discussão.

“Assim como os promotores públicos e os tribunais, a Central para Investigação de Crimes Nacional-Socialistas só pode funcionar enquanto os réus ainda estiverem vivos e puderem ser julgados”, explica o promotor Jens Rommel, que dirigiu a repartição em Ludwigsburg por cinco anos, até o início de 2020. “Não temos um mandato histórico abrangente para solucionar crimes. E tenho certeza de que nos anos restantes não seremos capazes de processar tudo por meios legais.”

Fora do sistema legal, no entanto, a Alemanha permanecerá comprometida com a lembrança – especialmente num momento em que o extremismo de direita e o antissemitismo estão novamente em alta, em toda a Europa.

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