A “condenada” cachaça no Brasil e no RN…

Gutenberg Costa – Escritor, pesquisador e folclorista

Hoje vou abordar um pouco da nossa cachaça, no nosso RN e Brasil.  Vou deixar lá pra frente, os santos Papas, como também os santos cachaceiros. Não se pode começar uma pesquisa séria, de um tema aqui, sem consultar antes, o papa do folclore brasileiro, o nosso Câmara Cascudo, sob pena de cair no descrédito diante de estudiosos mais atentos. E por falar no mestre do folclore, este é o consagrado autor do importante livro, ‘Prelúdio da Cachaça’, edição de 1968, que trata da etnologia, história e sociologia da aguardente no Brasil. Obra de consulta para quem pesquisa a cachaça, com seriedade.

A cachaça é antiga, usada pelos índios que aqui viviam, antes dos invasores portugueses. Usada pelos escravos africanos, em muitas bebidas e seus rituais. Produto alcoólico muito popular entre o povo e discriminado nas festas elitizadas, que preferiam os vinhos. A igreja católica usa o vinho há milênios. Conheci de perto alguns padres que degustavam a boa cachaça em seus almoços. Vinho na missa e cachaça em casa.

Vi umas das maiores coleções de garrafas destas no Nordeste, do saudoso amigo folclorista pernambucano Mário Souto Maior. Preciosa coleção doada em vida deste a Fundação Joaquim Nabuco. O velho mestre Mário, publicou várias obras, entre elas, o ‘Dicionário da Cachaça’, em 1973. Todas às vezes, em que eu fui a sua residência em Olinda/PE, fui ‘agraciado’, com um licor de tangerina, fabricação caseira, do próprio, para batizar os amigos visitantes. Há décadas eu fui a Recife/PE, somente para anotar as marcas oriundas do Rio Grande do Norte, em sua antiga coleção.

 

 

Com minha teimosia e curiosidade fiz o que pude. Minha pesquisa continua na gaveta, como muita coisa minha, ainda sem apoio para o devido conhecimento dos leitores do nosso Estado. Quem sabe eu residisse em outras paragens, já teria publicado a ‘Pequena história da cachaça no RN’, com suas marcas, rótulos antigos e nomes de empresários e proprietários de antigos engenhos. Já tive um grande ‘ajuntamento’ que foi vendido a um colecionador lá em Mossoró. Tudo por falta de espaço em minha casa e dinheiro no meu bolso. Hoje, estou com nova coleção trazida democraticamente pelos amigos e amigas que me visitam. Segurei algumas marcas do RN da antiga, como ‘Olho D’água’; ‘Murim’ e ‘Papary’. A ‘Malhada Vermelha’, foi roubada. Roubo perdoado, o ladrão não!

Outro folclorista, o velho amigo sergipano José Calasans, que sempre me recebia em Salvador com uísques e vinhos, escreveu a obra, ‘Cachaça, Moça Branca’, em 1951. Na casa do também folclorista Barianne Ortêncio, em Goiânia/GO, fui várias vezes, festivamente recebido com generosas doses de sua cachaça. Marca deste, engarrafada e vendida com fama pelo Estado de Goiás. Este, ensinou-me algumas regras: Emborque o copo junto com o dono da casa. Deixe o anfitrião abrir a garrafa e colocar nos copos. Diga bem alto um ‘viva a saúde’ e ao dono da morada. O único folclorista do mundo que eu conheci, que não bebia cachaça, foi o mestre e saudoso amigo Deífilo Gurgel. Quando eu estava viajando em sua companhia, visitando os grupos folclóricos e mestres, este se declarava logo ser tomador de água e café: “Eu quero café, a cachaça pode trazer para os amigos Gutenberg Costa e Severino Vicente…”.

No meu livro, edição esgotada, ‘Breviário Profano do Povo’, publicado pela insistência e generosidade do grande e bravo mossoroense Vingt Un Rosado, em 2003. Estão na citada obra, o ‘Pai Nosso’ do Cachaceiro e o ‘Credo’ do cachaceiro. Tudo fruto da religiosidade popular e santo humor do nosso povo nordestino. E por falar no saudoso mestre e amigo da terra de Santa Luzia, este sempre me recebeu com alegria e livros para doar-me em sua abençoada casa, regado a sucos de frutas de época, trazidos em bandeja especial pela santa dona América. Talvez não desconfiasse que todo folclorista gosta de uma cachacinha boa para um brinde amigo. Não tenho como não evocar a dona Estela, que repetia a sua lição do viajante, para o irrequieto filho na hora da arrumação da mala: “Tome com gosto e gratidão, tudo que lhes oferecer em suas viagens. Nunca desagrade o dono ou dona da casa… faça por onde ser convidado para voltar”.

Não posso me referir a querida cidade de Mossoró, que ao contrário de Lampião, só me recebeu com festanças e alegrias. O saudoso amigo Raibrito, ficava logo de plantão, bem sentado no bar Oitão, do centro, me esperando para conversas e tomas umas e outras. Filemon, quando bebia era meu fiel escudeiro. Com os amigos, Kydelmir Dantas, Cid Augusto, Gustavo Luz e Caio César Muniz, entre outros, eu tenho histórias para encher uns três livros, só de boas cachaçadas passadas. Já o amigo historiador Geraldo Maia do Nascimento, grande e organizado colecionador de garrafas de cachaças, montou em sua casa, um verdadeiro museu e uma confraria em Mossoró, para os amigos degustadores da dita água que passarinho não bebe. Confraria que eu fui honradamente aceito e batizado há décadas. Nem precisa dizer que uma noite sempre é reservada para receber-me com conversas e a degustação fraterna, na acolhedora casa do querido e exímio historiador ‘Gemaia’.

Estando em Ipanema, no Rio de Janeiro, em 2003, visitando um sebo, lá fiz uma grande amizade com o maior estudioso do Brasil da cachaça. Apreciador fino desta e ‘cachaçológo’ o folclorista Marcelo Câmara, que quixotescamente fundou na capital carioca a ‘Confraria do Copo Furado’, em 1994. O agitador cultural Marcelo, levou-me a famosa ‘Academia da Cachaça’, ande se reúnem os imortais das letras que bebem cachaça. Todos com fardão e respeito em torno de uma grande mesa, me receberam, como visitante ilustre papa jerimum. Na ocasião falei um pouco sobre Câmara Cascudo e seu pouco conhecido no RN, ‘Prelúdio da Cachaça’, de 1968.

Em agosto 2019, lancei com sucesso o mais recente trabalho de pesquisa, intitulado, ‘Breviário Etílico, Gastronômico e Sentimental da Cidade do Natal’, aonde em 228 páginas, mostro historicamente centenas de bares, botecos e lugares afins, que vendiam/vendem cachaças, de 1975 a 2019. Vou logo avisando que a citada edição, está esgotada.

Não precisa ninguém dizer que o nosso RN é demasiado ingrato, com seus valorosos escritores e omisso com o descaso diário com a nossa arquitetura antiga, demolida geralmente, para virar estacionamento de automóveis. Sem falar que é muito difícil defender a nossa cultura tradicional. A luta é grande, mas pior seria não bradarmos aos ventos e aos mares, como fazia o genial religioso Antônio Vieira. Vamos continuar como nossos sermões, quer gostem de cachaça ou não! Mesmo bebendo, nosso povo tão bom, quase sem santos brasileiros canonizados, oferece antes da cachaça descer de goela abaixo, uma dose pro santo! E quem é o santo? Só Deus sabe!

O Papa argentino afirmou, embora rindo, que preferimos misturar o sagrado com o profano. É do brasileiro, misturar tudo com sua santidade. Oração na igreja e no terreiro afro. Jejum e carnaval. Feijão com arroz no prato. Caju com cachaça no copo, como compôs o nosso saudoso Veríssimo de Melo, em sua famosa canção. E na argentina, segundo se sabe, se misturam outras coisas, além de orações e vinhos. Cala-te boca! Aí da mãe do Bispo, se souber de uma Candinha plantonista, que eu estou falando muita besteira neste santo domingo…

Mês junino, dos três santos, Antônio, João e Pedro. Morada São Saruê, Nísia Floresta/RN

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