Clauder Arcanjo – Pílulas para o Silêncio (Parte CLXI)

(A Boba, de Anita Malfatti)

Soa no acaso do rio um apito, só um. 

(Fernando Pessoa, em “Ode marítima”)

O rio de ontem, vazo e mudo, passou deixando vazantes coradas pelo sol corrente. 

O rio de hoje, largo e esdrúxulo, desfila diante dos meus olhos assombrados. Sobre mim, um sol que insiste em queimar as lembranças, plantações de um tudo. 

Há sempre um rio a me lembrar das minhas vazantes. 

 

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Todos os apitos que escuto, quer em terra, quer em mar, trazem-me a sensação de que existe alguém a canoar em águas-enchentes que eu não sei identificar. 

O mundo não se importa com as reminiscências não pragmáticas. E um mero apito não altera as ações no mercado de capitais. 

 

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— Alguém ouviu um apito na noite passada? — Indaguei, assombrado. 

— Um ou dois? 

— Não me diga que foi mais de um! — Adiantou-se um senhor de alparcatas de rabicho, conhecido por sua demência. 

— Eu ouvi apenas um! — Intrometeu-se uma senhora, alcunhada de “A Boba de Licânia”. 

— Não se preocupem. Se apitou, apitará novamente. É apenas uma questão de fé e de esperança, amigos. Concordam? — Arrematei. 

— Caso o senhor resolva aguardar o apito à beira d’água, serei a sua companhia! — E a Boba me apertou, com o coração em festa. 

No fim da tarde, toda a cidade nos observava. Eu e meus parceiros, na Pedra da Luzia, bem próximos do remanso das águas, a aguardarmos pelo apito do canoeiro da invernada. 

— Fiquem atentos! O apito será único, se acaso não o escutarmos, ai meu Deus, o inverno nos será um difícil caso! — Adverti-os. 

— E se forem dois? — Indagou-me o julgado demente. 

 

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O vírus que mais assusta é aquele transmitido pelo abraço da indiferença, cujo vetor da pandemia é a carona da omissão. 

 

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Falando de medo, esta manhã flagrei um bem-te-vi, aos cânticos, dividindo um galho bem fino com um canário da terra. 

Enquanto os homens, silentes e cabisbaixos, preocupavam-se em manter distância um do outro. 

 

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Dividirei o que escrevo com quem souber vigiar a lua, ou com aquele que guardar os segredos da noite, grávida de sonhos, ou, também, com os capazes de ouvirem a voz dos deserdados na esquina do mais alto muro. 

Posso até, quem sabe, escrever um conto novo para os que ainda virão. Homens e mulheres que descobrirão que o ato mais nobre é confiar no brotar da semente ainda não enfiada neste tão duro chão. 

Quando, quem sabe, a flor rasgar o asfalto (e Drummond sempre a nos lembrar desse milagre!), surgirá um brilho novo no chão e nos céus deste março, que se arrasta mesquinho e casmurro sem o brilho de outrora. 

Os homens de hoje adoram o reinado do temor e teimam em não se amasiarem com a bela (e disponível) Utopia. 

Valei-nos, Sant’Anna! Ilumine-nos, São Francisco! 

 

Clauder

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras. 

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