O ALIENÍGENA (PARTE XXXVII)

Clauder Arcanjo*

Pintura “O Alquimista em busca da pedra filosofal”, de Joseph Wright.

 

Serenados os ânimos, e recobrada a minha saúde, eis que estamos aqui: eu e o meu exército de personagens. Prontos para irmos em frente, e desvendarmos logo este mistério que campeia em Licânia (e que já deve estar enchendo a paciência dos meus pouco leitores).

Pois muito bem, onde eu me encontrava mesmo antes da gripe?

— Francamente, Clauder Arcanjo!

— Calma, Companheiro Acácio! Dê-me um tempo, voltarei a rever como se deram os últimos episódios; e logo, logo estarei aqui: leve e trigueiro. Cheio de fabulismos.

 

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A justiça não ligou para os argumentos apresentados pela defesa, e concedeu a soltura dos capturados.

— Isto aqui é uma terra sem lei! A gente prende os cabras, colhe os depoimentos, apresenta-os ao juiz da cidade vizinha e… Babau! Tudo deu em nada, voltamos à estaca zero. Isto é uma merda! — protestou Paulo Bodô.

— Vocês estão pensando raso. Vamos nos reunir um pouco mais distante, não quero ser surpreendido por nenhum dedo-duro. Só nos faltaria esta: os bandidos soltos, e nós recolhidos ao presídio por não cumprir as ordens judiciais! — argumentou João Américo.

Quando chegaram debaixo de uma latada à beira do rio, começou a conversaria.

O primeiro a pedir a palavra foi o Coronel Jorge:

— Sabemos onde ocorreu, vamos para cima. Esses que foram soltos são arraias-miúdas. Pegaremos os grandes!

Seu Zequinha, sempre ponderado, disse:

— E com que roupa? Melhor, com que armas? De mãos abanando, nem abelha se combate. Concordam?

— E o que a delegacia tem de armamento pesado, Cabo Jacinto Gamão? — interrogou Robertão Social.

— Só dispomos de duas algemas, uma espingarda soca-soca e um revólver trinta e oito. Este, sem balas — informou o homem da lei de Licânia.

— E como vocês conseguiram manter a ordem nesta província, seu Jacinto? — perguntou o professor Galvino.

O Cabo Jacinto de pronto respondeu:

— Fingindo que estávamos sempre bem municiados. O medo, quando amasiado com uma boa versão, professor, obra milagres.

Brizolete Hernandes, ladeada por Goiaba e Nabuco, conclamou os presentes:

— Retornem às suas casas, e recolham tudo que possa servir de armamento. Vamos, depressa!

 

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Duas horas depois a tropa estava reunida na Praça do Poeta. Lucas San conseguiu quatro atiradeiras; Severíssimo Pancão, uma palmatória que pertencera ao seu padrinho; Baltazar do Bozó, dois chicotes de couro cru; Das Dores, três peixeiras cegas; Gazumba, um punhal com cabo de madrepérola; Belarmino, uma banda de pilão; Raimundo Sacristão, dois castiçais antigos; padre Araquento, o Livro do Apocalipse; Samaria Constância, dois pares de tamancos de saltos altos e finos; Lau, uma lata de querosene; Federardo, uma funda que pertencera ao seu pai; seu Zequinha, que chegara de mãos abanando, recebeu um tijolo do Bodô, pois não queria que seu padrinho passasse vergonha.

— A garra que nos une há de superar nossas deficiências bélicas! — discursou Madame Brizó levantando a sua espada, conclamando-os à luta.

Nisso a espada atinge um ninho de marimbondos de fogo que, furiosos, passam a picar os presentes. Todos partiram em fuga.

A corrida foi tão admirável que Madame Brizolete Hernandes, maravilhada com a coragem que os movia em direção ao campo de batalha, gritou altiva:

— Licânia livre ou morte!

— Au! Auuu… Aaau! Aauuuu!… — interveio Goiaba. Traduzindo: “Não quero morrer picado por marimbondo! Prefiro a raiva!”.

Severíssimo Pancão, dizem que, devido ao aroma dos bagos, foi o único não atingido. Com isso, após mais uma amassada nas partes íntimas, concluiu:

— Precisávamos de um incentivo externo. Deus escreve certo sobre ferrões tortos!

Zé Aguiar, Gilvânia e Porfírio Costabrava haviam se atrasado na recolha dos armamentos. Ao verem a corrida na direção da serra, juntaram-se aos legionários de Licânia.

 

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No capítulo seguinte, leitor, a guerra se instalará no sertão de Licânia. Prepare-se, pois como bem gosta de ressaltar nosso protofilósofo João Américo:

Bellum est sal terrae.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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