O REVISOR

(Pintura “A Paixão da Criação”, de Leonid Pasternak.)

          Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!
(Machado de Assis, em “Um apólogo”.)

No pequeno escritório, cercado pela elegância discreta dos clássicos, Paulo José revisita a nova edição de um tratado sobre a etimologia das palavras. Absorto na leitura, inicialmente não percebe quando lhe batem à porta. Minutos depois escuta um chamado:
— Senhor Paulo José?!
Dirige-se à janela que dá para a rua e vê um homem elegante junto à soleira da porta.
— Pois não!
— Aqui é onde mora o revisor Paulo José?
— Sim, sou eu.
— Gostaria de contratar os seus serviços.
Resmunga contrafeito. Nunca gosta de quando tratam a sua carpintaria com a língua materna como “um serviço”.
Abre a porta e solicita que o visitante entre. Conduze-o para a saleta, não levava estranhos ao seu ambiente de trabalho.
— Em que posso ajudá-lo, senhor…
— Advogado Danúbio Giordano, muito prazer.
O recém-chegado ajusta a gravata no pescoço avantajado, aboleta-se na poltrona e abre uma pasta de couro. Dela saca um calhamaço de páginas. Mal as dispôs sobre as pernas, explica:
— Como minha família migrou da Itália, terra de Dante, e incentivado pelos amigos, pensei em publicar o meu primeiro livro de poemas. Sou um homem realizado no direito, modéstia à parte, no entanto a poesia bateu na porta. Sabe?
— “Bateu na porta”?! E ela se machucou? — devolve Paulo José, incomodado com a indevida construção.
Seu Giordano não percebe a ironia. Como está apressado, continua:
— Quero apenas que o senhor dê uma corrida de olhos nos meus versos. Já estou com a editora contatada e penso em lançar tal obra no Dia da Poesia.
— Corrida de olhos?
— Sim. Ao apresentar a um poeta amigo, ele me garantiu que eu já estrearei com pé direito.
— Com o pé direito?
— Mas a humildade é a marca dos grandes. Em virtude de tal zelo, nunca é demais alguns cuidados básicos adicionais. Um deles, bem sei, é contar com um revisor à altura.
— Um revisor à altura?
— Indicaram-me o senhor, seu Paulo José, deram-me excelentes referências suas.                     Posso contar com os seus serviços?
Paulo José dá-lhe as costas, com receio de sua expressão facial revelar o incômodo que sente naquele instante. Dirige-se à garrafa de café que observara tudo na mesinha ao canto.           “E eu que antes estava na companhia das palavras de origem grega… vejo-me agora com este presente de grego!”
— O senhor aceita um café, seu Giordano Alighieri?
— Danúbio Giordano, por favor.
— Minhas desculpas. Nunca fui forte em memorizar nomes. Pois bem.
Leva-lhe uma xícara de café. Pouco depois serve-se, como se a ganhar tempo diante daquela situação.
O poeta Giordano quebra o silêncio, propondo:
— Se o senhor estiver preocupado com os custos, digo-lhe…
— O problema, seu Giordano, é que estou com um trabalho meu sendo preparado para o novo concurso de poesia da Academia. O prazo é…
— E se eu lhe pagar o triplo da sua tabela normal?
Paulo José, apesar do mal-estar com a expressão “tabela normal”, lembra-se das dívidas com o leiteiro e com o padeiro. Coça o alto da cabeça e, mais para se ver livre do visitante, pede duas semanas de prazo, além de uma quantia exorbitante.
— Combinado. Vou honrar logo com a metade, acertarei o resto quando da entrega dos poemas revisados.
Abre a carteira que portava no bolso interno do paletó de linho, conta as cédulas, passando-as para as mãos do revisor. Antes de sair, joga o calhamaço sobre a mesa de centro, sunga as calças, e arremata:
— Duas semanas. Nem um dia a mais. Capriche, mas cuidado para não… Como direi: alterar a essência da minha poética. Passar bem.
— Sim, que Deus me permita que eu passe bem — devolve Paulo José.

& & &

          Paulo José sofre, durante catorze dias, com as ditas construções poéticas do “novo Dante” da província. Noite e dia, dia e noite. Versos de pé quebrado, rimas pobres, construções infantis, erros grosseiros…
Como sempre cumprira com os seus compromissos, revisa… Melhor, refaz toda a obra dentro do período acertado. Na data estipulada, passa-a às mãos do seu “contratante”.
— Aqui está o complemento pela paga dos seus serviços, senhor Paulo José. Ainda incluí aí uma gorjetinha a mais.
— Grato. Queria destacar um aspecto; eu só não trabalhei no título: A saga suprema da poesia.
— Fez bem, fez muito bem. Tal título nasceu quando da primeira visita da minha musa inspiradora.
— O senhor tem uma musa inspiradora?!…
— Sim, caro revisor, ela me visita noite alta. Sempre noite alta.

& & &

          Um mês depois a notícia em todas as gazetas: “A saga suprema da poesia, de Danúbio Giordano, recebe o prêmio da Academia de melhor livro de poesia do ano”. Entra na livraria mais próxima e adquire um exemplar. Ao correr os olhos pela página com os créditos, a surpresa: revisão do autor.

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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