PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCVII)

 

Clauder Arcanjo*

(Foto de Dona Cleyde)

 

A saudade é um pássaro cego que não cansa de voar; e quanto mais ele voa mais fere o céu do tempo.

(Clauder Arcanjo)

 

Saíste e meu lar ficou vazio. Um vazio pleno de tua presença: nas molduras dos quadros, nas rosas que escolheste na decoração da nossa varanda, nas cortinas sujeitas ao vento arredio, no aroma que recende dos teus vestidos no guarda-roupa… Também na tua voz calada, como se dependurada nessas horas aflitas e intermináveis.

— Dona Cleyde?!

Percorro cada quarto; volto para a tua cama, nada. Apenas um entalo na garganta ao me encontrar com a máquina que te soprava o oxigênio nos pulmões tão combalidos. Essa tal qual um soldado que houvesse perdido a batalha e se revelasse uma imprestável testemunha do teu embate final.

Eu queria tanto ainda te dizer algumas coisas, Dona Cleyde! Uma delas era te repetir, pela milionésima vez, que nunca me incomodei em ter te dado o meu quarto, a nossa cama. Perdoa-me se, por acaso, não te convenci dessa bendita e abnegada cessão.

Queria tanto que retornasses ao teu canto em nossa cama, para te acariciar os cabelos brancos, para te chamar carinhosamente de “Minha rainha” e te perguntar se querias alguma coisa!

— Dona Cleyde?!

O silêncio não me responde. Ao meu lado, tão só o vazio do vazio. O oco do nada. Nada mais. Isso me prende o peito, garroteia-me o verbo, aperta-me o coração, sufoca-me, oprime meu pensar…

Escrevo na intenção de fugir de tamanho desespero; e este meu texto, com certeza, não servirá para coisa alguma. Apenas como mísera boia de salvação minha: o teu genro.

— “Meu filho…”

Sim, teu filho, assim é que eu gostava quando tu me chamavas. Agora me vêm, aos olhos embaciados, os nossos diálogos à tardinha:

— Eu me casei bem, Dona Cleyde?

E, célere, respondias-me:

— Sim, claro! Minha filha é ótima: excelente mãe, boa companheira, zelosa… — E desfiavas um rosário de predicados acerca das virtudes da nossa querida Biscuí e do acerto de eu tê-la escolhido como esposa.

Na sequência eu te beijava, indagando-te:

— E ela, Dona Cleyde, ela se casou bem?

E me respondias, com teus olhos verdes e teus lábios finos, lacônica:

— Sim, ela se casou.

E resumias:

— Os dois se casaram muito bem.

Ríamos, enquanto eu te cheirava a testa, uma pele lisa, macia, de um rosado singular.

— Dona Cleyde?!

 

& & &

 

Está a noite a cair, sem a tua presença. Eu preparo a mesa do jantar, coloco a tua xícara, o prato de sopa… No entanto, não virás.

De volta à varanda, olho para o céu e oro silente:

“Senhor, cuida da tua filha. Ela é frágil. Quando Dona Cleyde for dormir, calça-lhe as meias de lã: ela sente muito frio nos pés. Outra coisa: no meio da noite, ofereça-lhe uvas vitória. Ela gosta delas bem geladas e maduras. Nunca deixes a minha rainha só, ouviste? Quero Te confessar um único pecado dela: ela tem medo de alma. Apesar de eu lhe garantir que elas não a incomodariam, Dona Cleyde me assacava, com olhos assustados: ‘Existem, meu filho. Tenho certeza! E, quando eu me for, vou voltar aqui apenas para lhe provar!’.”

Volta, Dona Cleyde! Estarei aguardando para te exaltar mais uma vez: “Nossa rainha, Diomar, minha mãe, a filha de 91 anos que Deus me deu.”

Antes de encerrar, um pedido: dá um abraço em papai aí no Céu, Dona Cleyde. E não vás reclamar da decoração da Mansão dos Eleitos!

— Dona Cleyde?!

A casa se recolhe, e a tua presença se eterniza para todo o sempre. Amém.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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