Pe. Fco. Cornélio Rodrigues – Reflexão para a Solenidade de Pentecostes

No domingo em que celebramos a solenidade de Pentecostes, o texto evangélico oferecido pela liturgia é João 20,19-23, trecho que relata a primeira manifestação do Senhor ressuscitado à comunidade dos discípulos, ao anoitecer do primeiro dia da semana, ou seja, o domingo mesmo da ressurreição. Esse texto já foi usado pela liturgia neste tempo pascal, como trecho do Evangelho do segundo domingo: Jo 20,19-31.

Pentecostes era uma das três festas mais importantes do calendário litúrgico judaico, juntamente com as festas da Páscoa e das Tendas; era celebrada no quinquagésimo dia após a páscoa, por isso recebeu o nome pentecostes. Inicialmente, seu sentido era estritamente agrícola, na qual se celebrava a conclusão da colheita. Na ocasião, os judeus mais devotos iam até Jerusalém para apresentar os melhores frutos da colheita como oferenda, em gratidão a Deus. Com o passar do tempo, a festa foi perdendo sua relação com a agricultura e ganhando um sentido mais religioso, passando a ser a festa do dom da lei. Esse novo sentido já estava consolidado no tempo de Jesus e dos apóstolos: pentecostes era a festa na qual os judeus recordavam a lei dada por Deus a Moisés.

Somente o evangelista Lucas, autor do livro dos Atos dos Apóstolos, faz coincidir o envio do Espírito Santo com a festa judaica de pentecostes. Isso é um mero artifício literário e teológico para levar as comunidades a adotarem os dons do Espírito Santo como única lei a ser seguida. A comunidade cristã, para ser fiel a Jesus e seu Evangelho, já não necessita mais das prescrições da Lei, basta estar sensível e aberta às intuições do Espírito Santo, dom do Ressuscitado.

Ao contrário do que Lucas propõe em Atos dos Apóstolos, a comunidade joanina fez de tudo para que os seus referenciais não coincidissem com os esquemas litúrgicos judaicos. Por isso, de acordo com o evangelista João, o Senhor ressuscitado doa o Espírito, seu dom maior, no dia mesmo da ressurreição. Embora a Igreja tenha adotado o esquema lucano, a proposta da comunidade joanina tem mais sentido e responde melhor às necessidades dos discípulos, como vemos no Evangelho de hoje. Amedrontada e sem poder de ação, essa não teria condições de esperar cinquenta dias para que o Espírito Santo se manifestasse em seu meio.

Embora estejamos, de fato, há cinquenta dias da páscoa, o Evangelho de hoje nos convida a retornarmos para aquele primeiro dia, o da ressurreição. Somente Maria Madalena tivera, até então, o privilégio de ver o Ressuscitado. Entre os discípulos reina o medo e a dúvida, como diz o texto: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles disse: a paz esteja convosco” (v 19).

Certamente, aquele foi um dia de muita tensão entre os discípulos. Isso se evidencia pelas informações do primeiro versículo: “reunidos a portas trancadas, por medo dos judeus”.  Esse dado evidencia insegurança e medo em demasia. Era uma comunidade em crise, em pleno desmoronamento. Embora em crise e amedrontada, parece que a comunidade estava decidida a não voltar mais aos esquemas de sempre: estava reunida “ao anoitecer do primeiro dia da semana”. Segundo o esquema litúrgico judaico, o anoitecer já não fazia mais parte do mesmo dia. Com esse dado, o evangelista apresenta a necessidade de distanciamento das tradições e prescrições da lei. Na embrionária comunidade cristã é necessário que o dia se prolongue, ou seja, as trevas não podem prevalecer sobre a luz. Mesmo que chegue a noite, o dia continua.

A situação de medo em que os discípulos se encontravam deve ser vista em um sentido mais amplo. Embora o evangelista afirme que era por “medo dos judeus” (em grego: fóbon ton iudaion), não podemos generalizar. Nem todos os judeus transmitiam medo aos discípulos. O evangelista se refere às autoridades e fariseus que sempre foram hostis a Jesus e continuavam sendo também aos discípulos (cf. 9,22; 12,42; 16,16). Enquanto não fizer uma experiência de encontro com o Ressuscitado, toda comunidade tende a fechar-se por medo e falta de convicções. Naquele medo estava a angústia, a desilusão e o remorso de alguns; significa a ausência do Senhor. Sem a presença do Ressuscitado toda a comunidade perece e sua mensagem é bloqueada; as portas fechadas impedem a boa nova de ecoar e a acolhida ao novo, ao diferente.

Diante dessa situação, eis que “Jesus entrou e, pôs-se no meio deles”. Aqui aparece a primeira condição para a comunidade superar a crise: ter Jesus como centro. Com isso, o evangelista reforça o modelo de comunidade ideal: uma comunidade livre, igualitária, tendo um único centro: o Cristo Ressuscitado. Trata-se de um claro combate à tendência hierarquizante na comunidade do discípulo amado. É esse o significado do seu colocar-se no meio.

Manifestando-se no meio dos discípulos, o Ressuscitado inicia neles o processo de transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz! É o encontro com a paz de Jesus que levanta o ânimo da comunidade fracassada. A paz é sinal da vida em plenitude, o bem-estar do ser humano em todas as suas dimensões, condição indispensável para a felicidade. Jesus comunica a sua paz e, ao mesmo tempo, reforça o modelo de comunidade sonhado e praticado durante toda a sua vida: uma comunidade igualitária e livre, tendo um único centro: o Cristo Ressuscitado. É esse o significado do seu colocar-se no meio deles. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que ao centro do seu existir esteja o Ressuscitado.

Na continuidade da experiência, Jesus “mostrou-lhes as mãos e o lado” (v. 20a), ou seja, as marcas do sofrimento, do flagelo e da cruz, garantindo a continuidade entre o Crucificado e o Ressuscitado. Com isso ele diz que a cruz não foi o fim e, assim, leva os discípulos à restituição da fé, uma vez que o principal motivo da desilusão e decepção deles foi o escândalo de um messias crucificado. É importante recordar sempre: o Ressuscitado tem as marcas do Crucificado. Ora, a cruz não foi um acidente na vida de Jesus, e não pode ser esquecida pela comunidade; pelo contrário, foi consequência de suas opções e do seu jeito de viver, e as opções da comunidade devem ser as mesmas. Portanto, é necessário que os discípulos estejam sempre, em todos os momentos da história, familiarizados com a cruz, não como símbolo ou adorno, mas como disposição de dar a vida por amor, como fez Jesus.

Finalmente, o medo foi vencido: “os discípulos se alegraram por verem o Senhor”. Conforme Ele mesmo tinha garantido, a tristeza dos discípulos foi transformada em alegria (cf. Jo 16,20). De uma situação de medo, a comunidade passa à alegria, como consequência da experiência com o Ressuscitado. A alegria é uma característica marcante da comunidade que vive e celebra a presença do Ressuscitado. A paz é novamente oferecida (v. 21a). Só é possível acolher plenamente os dons pascais com a paz oferecida por Jesus. É a mesma paz transmitida anteriormente como antídoto ao medo. Aqui, nessa segunda vez, a paz precede o envio, como encorajamento para a missão: não basta transformar o medo em alegria, é necessário anunciar e partilhar essa alegria… a alegria do Evangelho!

Ao contrário de Mateus, Marcos e Lucas que determinam as nações e até os confins da terra como destinos da missão (cf. Mt 28,19; Mc 16,15; Lc 24,47; At 1,8), em João isso não é determinado: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. Jesus simplesmente envia. Sem diminuir a importância da missão em sua dimensão universal, o mais importante para o Quarto Evangelho é a comunidade. É essa a primeira destinatária da missão, porque é nessa que estão as situações de medo, desconfiança, angústia, falta de entusiasmo, por isso é a primeira a necessitar da paz do Ressuscitado. Sendo portadores da sua paz, os discípulos são enviados com as mesmas credenciais, pois Ele os envia como o “Pai o enviou” e, portanto, devem fazer as mesmas opções e assumir as respectivas consequências.

O texto mostra, como sempre, a coerência entre a prática e as palavras de Jesus: “E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (v. 22). Jesus tinha prometido o Espírito Santo na última ceia (cf. Jo 14,16.26; 15,26). Ao soprar sobre eles, a promessa é cumprida, o Espírito é comunicado. O evangelista usa o mesmo verbo empregado no relato da criação do ser humano: “O Senhor modelou o ser humano com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o ser humano tornou-se vivente” (Gn 2,7). O verbo soprar aqui (em grego: empsáo) significa transmissão de vida. Assim, podemos dizer que Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade inteira.

Finalmente, a comunidade foi revivificada e habilitada para a missão. Ao receber o Espírito Santo (em grego: pneuma háguios), a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. É o Espírito quem mantém a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro. A missão da comunidade portadora do Espírito Santo é prolongar no tempo e no espaço a missão do próprio Jesus.

O Espírito Santo garante responsabilidade à comunidade, jamais poder. Por isso, devemos prestar muita atenção à afirmação de Jesus: “A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). Por muito tempo, esse trecho foi usado simplesmente para fundamentar o sacramento da penitência ou confissão, equivocadamente. Jesus não está dando um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade à comunidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas e de todos os lugares. A comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se presente em todas as situações para, assim, tornar presente também o Ressuscitado.

Não se trata, portanto, de poder para determinar se um pecado pode ou não pode ser perdoado. É a responsabilidade da obrigatoriedade da presença cristã para que, de fato, o mundo seja reconciliado com Deus. O Espírito Santo, doado pelo Ressuscitado, recria e renova a humanidade. A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29).

Assim como João, o batista, apontou para Jesus como o responsável por fazer o pecado desaparecer do mundo (cf. Jo 1,29), agora, é Jesus quem confia à comunidade essa responsabilidade.  Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. O que perdoa mesmo é o amor de Jesus; logo, ficam pecados sem perdão quando os discípulos e discípulas de Jesus deixam de amar como Ele amou. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade.

É na comunidade que o Ressuscitado se manifesta, fazendo essa perder o medo e insegurança. Somente uma comunidade que tem o Ressuscitado como centro, pode viver plenamente reconciliada, em paz e animada pelo Espírito. São essas as condições para que a alegria do Evangelho seja, de fato, anunciada! Deixando-se conduzir pelo Espírito Santo, a comunidade atualiza e prolonga, no tempo e no espaço, a missão única do próprio Jesus de revelar o amor de Deus a todas as pessoas.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN