Mulheres fantásticas (VIII): A Mulher Saudade – Clauder Arcanjo

Para Sanderson Negreiros

(In memoriam)

 

Passava pela rua, quando, frente àquela casa de azulejos azuis, ouvi um choro baixo. Qualquer lamento sempre me interrompe os passos e faz-me cair na conta do sem jeito.

De início, imóvel. Com pouco, curioso. Logo depois, meti o nariz pelo portão, entrando no pequeno jardim. A porta da frente se encontrava entreaberta. Portada alta, encabeçada por um pequeno detalhe em vidro fosco multicolorido.

Era verão, e o calor cozia o tempo e o vento. Reuni coragem e entrei.

— Boa tarde.

O silêncio. Pesado e sem eco.

As pernas quiseram dar a meia-volta, mas… uma voz anasalada cortou-me tal ideia.

— Entre.

De início, nada vi. Apenas a percepção de que a fala vinha do fundo da saleta; a diferença de luminosidade entre o exterior e interior da residência tornara-me quase cego.

Cocei os olhos, franzi o cenho e apurei a vista. Um vulto magro e de roupas longas, sentado numa cadeira de balanço, despontou.

 

***

 

Nosso primeiro encontro deu-se há exatos três anos. A senhora da casa dos azulejos azuis passou a receber minha visita toda tarde de sábado. Saía para a missa das seis, mas, bem antes, lá passava, a fim de tomarmos o chá das cinco.

Desde o início, percebi que era uma mulher repleta de saudade. A cada sábado, relatava-me a mesma história. No entanto, uma narração sempre entremeada de novos detalhes, como se, a cada vez que ela me contasse, novas lembranças fossem brotando, como a se revelarem na sua mente pontos outros, que se enxertavam com perfeição no núcleo base daquele enredo.

Ao final, o choro. Na primeira semana, contido. Como se envergonhada de culminar, em lágrimas, a dor daquela saudade. Contudo, com o passar das semanas, juntei-me ao seu debulhar de copioso, e saudoso, pranto.

— Ele me deixou. Mas o problema foi que não se despediu de mim. Como, se havíamos recém-construído nossa casa? Sim, esta casa!, de azulejos azuis, porque ele queria homenagear os seus ancestrais lusitanos. “Um cadinho de Lisboa aqui, minha querida!”; eram essas suas palavras, toda vez que visitávamos a construção.

Esta primeira parte de sua narrativa, confesso, saiu de rompante. Depois, parou e entrou num mutismo incômodo. Saiu da sala, entrou, trouxe o samovar e serviu-nos o chá. As louças eram antigas, todavia de muito bom gosto.

— Louças da avó paterna de Matias Moscado!

Deduzi que Matias Moscado era o nome do seu esposo. Nada lhe disse, muito menos nada lhe indaguei; servi-me, atento aos seus modos de fidalguia.

Na outra visita, como se nada houvesse me dito, ela me relatou idêntica história. Enxertando apenas mais detalhes:

— Era um domingo azul de nuvens brancas. Ele me deixou. Senti quando a tarde fechou-se em nuvens escuras, e ele não voltou. Mas o problema foi que não se despediu de mim. Ele sempre educado, de bons modos. Apaixonados estávamos, casamos jovens. Como, se havíamos recém-construído nossa casa? Sim, esta casa!, de azulejos azuis…

 

***

 

Dois sábados depois, como se depositasse mais confiança em mim, entrou na seara da relação dela com a família portuguesa d’além-mar:

— Era um domingo azul de nuvens brancas. E como são belos os domingos azuis!; foram suas palavras ao me beijar no nosso desjejum. Estava com seu jaleco cinza, era um homem elegante, gostava das roupas bem passadas. Saiu, como era costume sair nas manhãs de domingo. Ele me deixou. Senti quando a tarde fechou-se em nuvens escuras, e ele não voltou. O canário na gaiola não trinava como de costume. Até o vento me trouxe um quê de arrepio. Mas o problema foi que não se despediu de mim. Ele sempre educado, de bons modos. Apaixonados estávamos, casamos jovens. “Após termos nosso ninho, teremos nosso pupilo: o herdeiro da casa dos azulejos azuis!”; brincava, tomando-me nos seus braços fortes. Como, se havíamos recém-construído nossa casa? Sim, esta casa!, de azulejos azuis….

 

***

 

Hoje, estou aqui. Trinta e seis semanas após o primeiro encontro. Diante da casa dos azulejos azuis. Com tudo que ela me disse, levantei toda a história e corri em busca do paradeiro do seu esposo: o português Matias Alvarenga Moscado. Natural da ribeira do Douro.

— Boa tarde.

— Entre.

Ela olhou para os meus olhos, deu com a pasta de couro. E, antes que lhe dissesse algo, despejou, entre choros e apelos de saudade:

— Era um domingo azul de nuvens brancas. E como são belos os domingos azuis!; foram suas palavras ao me beijar no nosso desjejum. Estava com seu jaleco cinza, era um homem elegante, gostava das roupas bem passadas. Saiu, como era costume sair nas manhãs de domingo. Dizem que seguia o mesmo caminho: a ribeira do Acaraú, a Pedra do Mercado com seu bulício, a bodega do Edir onde ele comprava o bacalhau brasileiro. “Não legítimo, com certeza!”; pagava e ralhava com o comerciante. Ele me deixou. Senti quando a tarde fechou-se em nuvens escuras, e ele não voltou. O canário na gaiola não trinava como de costume. Até o vento me trouxe um quê de arrepio. Mas o problema foi que não se despediu de mim. Ele sempre educado, de bons modos. Apaixonados estávamos, casamos jovens. “Após termos nosso ninho, teremos nosso pupilo: o herdeiro da casa dos azulejos azuis!”; brincava, tomando-me nos seus braços fortes. Como, se havíamos recém-construído nossa casa? Sim, esta casa!, de azulejos azuis…. — enquanto me confidenciava, ela não tirava os olhos da pasta que eu trouxera com o resultado da diligência do investigador.

— De azulejos azuis, porque ele queria homenagear os seus ancestrais lusitanos. “Um cadinho de Lisboa aqui, minha querida!”; eram essas suas palavras, toda vez que visitávamos a construção.

Um choro convulso assomou-lhe à face, ela levou a mão descarnada sobre a pasta, como se a empurrando para longe, enquanto desabafava:

— Mas, acredite, restou comigo a pureza da sua presença na minha saudade. E é tudo o que me resta!

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]