Thadeu Brandão – Encruzilhadas da Segurança Pública

Dilemas Potiguares

 

O Rio Grande do Norte vivencia, como nunca antes em sua história, um dilema profundo no que se refere à segurança pública de seus cidadãos. Praticamente todas as regiões padecem de uma “pandemia de insegurança” que vai dos atentados ao patrimônio aos homicídios. Os primeiros, nenhum município praticamente escapa. Os segundos, atingindo principalmente os municípios mais populosos, economicamente mais dinâmicos e com maior índice de desigualdade social.

O RN cidade possui um efetivo policial muito aquém de suas necessidades. A Polícia Civil, trabalhando praticamente na virtualidade, padece com falta de material humano e de estrutura básica. A Polícia Militar basicamente “enxuga gelo”, bravamente que se diga, com um déficit básico que pode chegar a cerca de mais de 50% do efetivo necessário.

Como nem só de polícia vive a segurança pública, faltou, ao longo dos últimos dez anos, um plano de segurança efetivo, com participação de especialistas que conheçam a cidade e sua realidade. Ou seja, inexistiu uma política pública de segurança no RN. De 2004 a 2014 os índices de CVLIs (Condutas Violentas Letais Intencionais) só fizeram subir, com dados corroborados pelo último Mapa da Violência. Coincidentemente, o período coincidiu com as gestões Wilma de Faria (2003-2010) e Rosalba Ciarlini (2011-2014). Estes foram marcados pela ênfase no amadorismo, da improvisação e do desinvestimento na área. Nada porém, diferente do que ocorria anteriormente, nas gestões pretéritas. A diferença crucial foi o crescente aumento nas taxas de CVLIs e de criminalidade. Seguimos ainda no mesmo diapasão, apesar da redução de 2015. O atual 2016 parece ver o agravamento contundente do problema.

Uma das características fundamentais da gestão de segurança pública até hoje é a absoluta ausência da participação da população e, neste ínterim, a ausência de Conselhos de Segurança, populares e com ampla integração polícia-comunidade-poder público. Ausência de planejamento, com necessários Planos Integrados de Segurança Pública (municipais e estadual) assim como Gabinetes de Gestão Integradas funcionais.

O discurso demagógico pautou-se até agora no efêmero e no superficial. Quem acompanhou a segurança pública, especialista ou não, sentiu na garganta o entalo do engodo até agora imposto. A população mais pobre, sem cercas elétricas, sistema eletrônico de segurança privada e outros apoios, é a que mais padece do problema. Com ela, os agentes da segurança (em todos os níveis), obrigados a trabalhar sem estrutura e, muitas vezes, retirando do próprio bolso para manter, ao menos, algo funcionando.

Falta planejamento estratégico. Faltam políticas efetivas de estruturação do sistema policial. Falta uma correlação inteligente ente o sistema prisional e o sistema de segurança pública. Sem isso, a curto prazo, nada mudará. Tudo isso, é claro, com participação popular, sem esquecer nos fóruns competentes que sugeri acima.

 

Áreas mais problemáticas: Mossoró na Berlinda

 

Os dados apontados nesse ensaio, na séria e competente pesquisa de Ivênio Hermes e Marcos Dionísio, apontaram duas principais áreas mais problemáticas da insegurança pública e da violência homicida do RN. São a Região Metropolitana de Natal (RMN) e Mossoró. Se a primeira área corrobora a um certo padrão nacional, populacional e de fluxo de riquezas, a presença da segunda estranha a muitos.

Mossoró vem apresentando, desde pelo menos 2005, uma dinâmica homicida crescente e constante. Sua taxa, hoje, é o dobro da média nacional, ficando em cerca de 55 homicídios por 100 mil habitantes (2011-2013). Os fatores identificadores são os mesmos para outras regiões do Brasil e mundo afora (que apresentam o mesmo padrão): índice de desigualdade econômica; estrutura populacional englobando total da população e densidade populacional (áreas maiores/mais densas têm taxas maiores); e índice de desemprego. A desigualdade de condições socioeconômicas em cidades, regiões ou municípios pode ajudar explicar a distribuição dos homicídios.

Em termos teóricos, a explicação dos altos índices de homicídios por arma de fogo em determinadas regiões poderiam ser compreendidos a partir dos processos de desorganização social resultantes de conflitos característicos de áreas de fronteira agrícola e de expansão onde inexistem mecanismos de controle formal. Segundo Cláudio Chaves Beato Filho e Frederico Couto Marinho:

Nessas regiões, os mecanismos de controle formal e informal cedem lugar a conflitos calcados na honra e em formas societais tradicionais. Curiosamente, muito desse processo é transplantado e reproduzido nas regiões metropolitanas do país, especialmente nas áreas dominadas por grupos armados em conflito pelo domínio de territórios (2007, p. 178).

No caso de Mossoró, assim como em outras cidades médias brasileiras – como apontou o Mapa da violência 2012 – a desorganização social em vastas áreas desses novos centros urbanos pode ser um dos aspectos a serem analisados mais detalhadamente para se poder compreender esse processo. Outro elemento é a capacidade regulatória – em termos jurídicos e de controle policial (o que inclui investigação eficiente e punição dos “culpados”) e de supervisão em certas áreas de alta incidência da violência tem a ver com processos de mudança (estrutural e espacial) em sua composição populacional. Tudo isso deve ser analisado ao longo de períodos mais extensos (média de 5 a 10 anos).

A dinâmica homicida nas médias cidades brasileiras vem crescendo, o que gera a necessidade de estudos comparativos desses locus onde, de forma ampla, as taxas vêm se apresentando altas: Campina Grande, Crato e Mossoró são exemplos mais próximos. Ao mesmo tempo, o crescimento econômico, sempre de forma desigual socialmente, está atrelado a essa dinâmica, na medida em que o perfil da vítima homicida permanece a mesma: homem, jovem, negro/pardo, morador de periferia e com baixa escolaridade, além de possuir ocupação informal ou precarizada. Não basta apenas apontar falhas no sistema de segurança pública – que, embora sejam elementos presentes – não explicam sozinhos a mesma dinâmica em cidades e estados diferentes. 

 

Perfil das Vítimas no RN e no Brasil

 

Juntamente com o RN, e aqui a ampliação é necessária, o Brasil vivencia, há pelo menos três décadas um duro cotidiano de riscos e incertezas. Nossa “modernidade tardia” caracterizar-se-ia pela reprodução estrutural da exclusão social e pela disseminação das violências, com a consequente ruptura de laços sociais e a exclusão de várias categorias sociais, como a juventude, uma das grandes vítimas desse processo.

Aqui, nesses rincões, o jovem relaciona-se com a violência de modo ambivalente: ora torna-se vítima, ora surge como agressor.

Fundamental frisar que os jovens vivenciam um processo de transição para a vida adulta, cada vez mais tardio em nosso momento civilizatório, quando então sua agressividade (pulsão) tem o caráter positivo de habilitá-los a se autonomizarem e a ocuparem um lugar no espaço social. Isto posto, uma das características marcantes nos adolescentes atuais é a incerteza do emprego, assim como o exercício e a vivência da agressividade e da violência. Num mundo de incertezas e de fragmentações, a violência surge como discurso, deveras autônomo.

Os dados de homicídios das últimas três décadas mostra uma tendência de generalização da violência. Considerando todo o período de 1980 a 2012, houve um continuado aumento das mortes de jovens e adultos jovens, sobretudo do sexo masculino, por causas externas (homicídios, suicídios, mortes no trânsito). Há uma sobremortalidade masculina e juvenil.

Não nos esqueçamos também a violência no trânsito, denominada de forma equivocada de “acidentes de trânsito”, foi a causa de aproximadamente 23 óbitos para cada 100 mil jovens em todo o país. O trânsito é, no mínimo catalizador desse processo.

Sociologicamente falando, nos reportando à herança de Nobert Elias, a violência configura-se como forma de linguagem e como norma social para algumas categorias sociais, em contraposição às chamadas normas “civilizadas”, pautadas pelo autocontrole e pelo controle social institucionalizado. No Brasil, sociedade em processo de “globalização”, efetiva-se uma pluralidade de diferentes tipos de normas sociais, podendo-se ver aí uma simultaneidade de padrões de orientação da conduta muitas vezes divergentes e incompatíveis.

Desta forma, nos deparamos com uma forma de sociabilidade (ou anti?), a violência, que configura-se como um dispositivo de controle, aberto e contínuo. Ela seria a relação social de excesso de poder que impede o reconhecimento do outro – indivíduo, classe, gênero ou raça – mediante o uso da força ou da coerção, provocando algum tipo de dano, um dilaceramento de sua cidadania, e configurando o oposto das possibilidades da sociedade democrática contemporânea. Envolve também uma polivalente gama de dimensões materiais, corporais e simbólicas agindo de modo específico na coerção com dano que se efetiva.

A sociedade, de modo geral, não reconhece que o adolescente está em um processo de transição para a vida adulta, quando sua agressividade é necessária para ele encontrar um lugar no espaço social. Aos jovens, provavelmente, tem faltado esse reconhecimento por parte das instituições socializadoras: trata-se de salientar a quebra do sentido da escola como dispositivo de socialização para a vida e para o trabalho, bem como a necessidade de construir o reconhecimento social dos jovens, pela afirmação de sua autoestima e de seu prestígio social na sociedade.

Vivemos um verdadeiro “genocídio” juvenil: jovens, negros/pardos, pobres, com baixa escolaridade e moradores de periferias. O perfil pouco muda e se altera nessas três décadas. Da faixa de 16 a 24 anos, o grosso das vítimas vai se consumindo. Quanto aos perpetradores, este quase que também pode ser considerado o perfil. O problema é que nossos homicídios são poucos investigados. Quando o são, poucas investigações são exitosas. Temos um quadro de homicídios perpetrados pelo próprio Estado e seus agentes que é difícil de investigar. Esse vácuo analítico custa caro ao Brasil e ao seu futuro.

Resta perguntar, que futuro?

 

Citação

BEATO FILHO, Cláudio Chaves, MARINHO, Frederico Couto. Padrões regionais de homicídio no Brasil. In: CRUZ, Marcus Vinicius Gonçalves da, BATITUCCI, Eduardo Cerqueira (Orgs.). Homicídios no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.